terça-feira , 5 novembro , 2024

Crítica | Liniker faz estreia espetacular como atriz no poderoso drama ‘Manhãs de Setembro’

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Liniker é um dos principais nomes da música brasileira contemporânea e carrega uma representatividade imprescindível no cenário mainstream, sobretudo por abrir portas para a comunidade trans. Dona de músicas de cunho espetacular, a artista participou do elogiado documentário ‘Bixa Travesty’ em 2018, mas não foi até este ano que fez sua estreia como atriz no drama Manhãs de Setembro, da Amazon Prime Video.

Em entrevista ao CinePOP, Liniker havia comentado que começou sua carreira no teatro, migrando para a música e encontrando tal plataforma como meio de trazer mensagens de empoderamento aos LGBTQIA+, como é o caso de “Boca”, de “Goela” e do recente “Baby 95”, facilmente uma das melhores canções de 2021. Demonstrando sua versatilidade, a cantora e compositora foi contratada para estrelar a série supracitada e, como era de se esperar, fez um brilhante début numa produção que tem a cara do Brasil, mergulhando em temáticas de extrema necessidade para discussão na atualidade. Aqui, ela dá vida a Cassandra, uma mulher trans apaixonada pela música que se apresenta de vez em quando em um clube paulistano e que luta para viver um dia de cada vez – até que um relacionamento do passado ameaça destruir tudo o que conquistou.

A princípio, Manhãs de Setembro parece seguir os passos de qualquer construção hollywoodiana que possamos pensar: Cassandra enfrenta o retorno de uma ex-namorada chamada Leide (encarnada pela sempre incrível Karine Teles), que aparece na porta de sua casa com um jovem menino que diz ser seu filho. A presença impactante dos dois personagens no cotidiano da protagonista é o que abala o mundo que demorou décadas para conquistar, ainda mais levando em conta que foi abandonada pela mãe e teve de se virar sozinha, encontrando em Vanusa um modelo de mulher que gostaria de seguir. É claro que, considerando a profunda personalidade de Cassandra, a busca pela independência é marcada tanto em sutilezas quanto obviedades (que não mancham a sólida estrutura arquitetada pelo diretor Luis Pinheiro e por sua competente equipe criativa, mas fornecem uma explicitação do que é a pura verdade).

Ao longo de breves cinco episódios, Teles consegue mostrar uma visão bem clara do que pretende. De um lado, temos a luta de uma anti-heroína tão densa quanto qualquer um de nós, recusando-se a aceitar que eventos externos ditem o que pode ou não fazer; de outro, Leide se vê num beco sem saída que a leva a contatar Cassandra em tempos de desespero, visto que está desempregada e é obrigada a morar num carro com o filho, despontando em diversos trabalhos para se manter viva. No topo de um desequilibrado castelo de cartas, há a ambientação pungente da selva de pedra de São Paulo, em que a contínua explosividade se ergue em um processo de opressão expressivo e que tangencia o dêitico.

De certo modo, a carga dramática é centralizada na conturbada dinâmica entre duas mulheres diferentes que se unem por um tempo já esquecido, mas que conseguiu calcar um caminho que intercruzasse num futuro distante; e, enquanto é redundante falar da interpretação aplaudível de Teles, Liniker rouba a cena em uma rendição invejável que dá início a uma nova faceta de sua carreira: Cassandra reúne as minorias em um tour-de-force que oscila da independência sistemático ao conflito interno; sendo uma mulher negra, pobre e trans, ela encontrou seu lugar em meio a amigos próximos – como é o caso do casal gay formado por Paulo Miklos e Gero Camilo – e insurgiu como uma força imensurável em meio a tantas adversidades. É por esse motivo que a conquista de uma quitinete ou a possibilidade de cantar em um clube é motivo de alegria e de que as coisas seguem um caminho de “otimismo realista”.

Nada é jogado em profusão. Pinheiro investe em um processo de desconstrução da própria cidade, cujo organismo ativo bombardeia em cada indivíduo que aparece em cena. Em outras palavras, à medida que o diretor realiza um movimento de expansão e contração, apresentando momentos opostos (como o interior aconchegante e “paradisíaco” do apartamento de Cassandra e do lugar onde performa, por exemplo, em contraposição ao aviltamento urbano das ruas que cruza todos os dias), ele transforma a atmosfera em uma brutal tradução artística da glamourização da pobreza feita pela própria mídia, que transforma pessoas em situação de abandono social e falta de prospecto em enredos de superação. São tais críticas que aumentam a densidade exponencial da produção e que criam laços com qualquer um que se queira assistir aos episódios.

Manhãs de Setembro se prova como uma das melhores e mais essenciais séries do ano. Deliciosamente guiada pela interpretação emocionante e pela química envolvente de Liniker e Karine Teles, a obra é uma análise antropológica e poética da vida de tantas Cassandras e Leides que andam pelas ruas brasileiras e que merecem ter suas histórias contadas.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em entrevista ao CinePOP, Liniker havia comentado que começou sua carreira no teatro, migrando para a música e encontrando tal plataforma como meio de trazer mensagens de empoderamento aos LGBTQIA+, como é o caso de “Boca”, de “Goela” e do recente “Baby 95”, facilmente uma das melhores canções de 2021. Demonstrando sua versatilidade, a cantora e compositora foi contratada para estrelar a série supracitada e, como era de se esperar, fez um brilhante début numa produção que tem a cara do Brasil, mergulhando em temáticas de extrema necessidade para discussão na atualidade. Aqui, ela dá vida a Cassandra, uma mulher trans apaixonada pela música que se apresenta de vez em quando em um clube paulistano e que luta para viver um dia de cada vez – até que um relacionamento do passado ameaça destruir tudo o que conquistou.

A princípio, Manhãs de Setembro parece seguir os passos de qualquer construção hollywoodiana que possamos pensar: Cassandra enfrenta o retorno de uma ex-namorada chamada Leide (encarnada pela sempre incrível Karine Teles), que aparece na porta de sua casa com um jovem menino que diz ser seu filho. A presença impactante dos dois personagens no cotidiano da protagonista é o que abala o mundo que demorou décadas para conquistar, ainda mais levando em conta que foi abandonada pela mãe e teve de se virar sozinha, encontrando em Vanusa um modelo de mulher que gostaria de seguir. É claro que, considerando a profunda personalidade de Cassandra, a busca pela independência é marcada tanto em sutilezas quanto obviedades (que não mancham a sólida estrutura arquitetada pelo diretor Luis Pinheiro e por sua competente equipe criativa, mas fornecem uma explicitação do que é a pura verdade).

Ao longo de breves cinco episódios, Teles consegue mostrar uma visão bem clara do que pretende. De um lado, temos a luta de uma anti-heroína tão densa quanto qualquer um de nós, recusando-se a aceitar que eventos externos ditem o que pode ou não fazer; de outro, Leide se vê num beco sem saída que a leva a contatar Cassandra em tempos de desespero, visto que está desempregada e é obrigada a morar num carro com o filho, despontando em diversos trabalhos para se manter viva. No topo de um desequilibrado castelo de cartas, há a ambientação pungente da selva de pedra de São Paulo, em que a contínua explosividade se ergue em um processo de opressão expressivo e que tangencia o dêitico.

De certo modo, a carga dramática é centralizada na conturbada dinâmica entre duas mulheres diferentes que se unem por um tempo já esquecido, mas que conseguiu calcar um caminho que intercruzasse num futuro distante; e, enquanto é redundante falar da interpretação aplaudível de Teles, Liniker rouba a cena em uma rendição invejável que dá início a uma nova faceta de sua carreira: Cassandra reúne as minorias em um tour-de-force que oscila da independência sistemático ao conflito interno; sendo uma mulher negra, pobre e trans, ela encontrou seu lugar em meio a amigos próximos – como é o caso do casal gay formado por Paulo Miklos e Gero Camilo – e insurgiu como uma força imensurável em meio a tantas adversidades. É por esse motivo que a conquista de uma quitinete ou a possibilidade de cantar em um clube é motivo de alegria e de que as coisas seguem um caminho de “otimismo realista”.

Nada é jogado em profusão. Pinheiro investe em um processo de desconstrução da própria cidade, cujo organismo ativo bombardeia em cada indivíduo que aparece em cena. Em outras palavras, à medida que o diretor realiza um movimento de expansão e contração, apresentando momentos opostos (como o interior aconchegante e “paradisíaco” do apartamento de Cassandra e do lugar onde performa, por exemplo, em contraposição ao aviltamento urbano das ruas que cruza todos os dias), ele transforma a atmosfera em uma brutal tradução artística da glamourização da pobreza feita pela própria mídia, que transforma pessoas em situação de abandono social e falta de prospecto em enredos de superação. São tais críticas que aumentam a densidade exponencial da produção e que criam laços com qualquer um que se queira assistir aos episódios.

Manhãs de Setembro se prova como uma das melhores e mais essenciais séries do ano. Deliciosamente guiada pela interpretação emocionante e pela química envolvente de Liniker e Karine Teles, a obra é uma análise antropológica e poética da vida de tantas Cassandras e Leides que andam pelas ruas brasileiras e que merecem ter suas histórias contadas.

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