sexta-feira , 20 dezembro , 2024

Crítica | Lovecraft Country – 01×05: Strange Case

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Se achávamos que Lovecraft Country não conseguiria superar a si mesmo, erramos – e erramos feio. O quinto episódio da temporada de estreia da nova sensação da HBO prometia ser apenas mais um drama racial, mas se transformou em uma crítica sobrenatural com alguns dos melhores efeitos especiais já vistos pela emissora, enquanto infundida com uma preciosidade narrativa de tirar o fôlego e de colocar em perspectiva que a releitura de Misha Green acerca do clássico romance assinado por Matt Ruff não veio para brincar. E, apesar dos pontuais deslizes, é inegável dizer que a produção mantém um nível altíssimo de qualidade à medida que pavimenta uma atmosfera tensa, chocante e narcótica que promete talvez o maior season finale de 2020 depois de ‘Watchmen’.

Seguindo a estética antológica (e agora lapidada) de Green, chegou a vez de Ruby (Wunmi Mosaku) roubar os holofotes em uma atuação magnífica e tocante em praticamente todos os aspectos. A meia-irmã de Leti (Jurnee Smollett), que permanecia nas sombras dos episódios como uma espécie de consciência humanizada das incursões exageradas dos personagens ao seu redor, começou a demonstrar grande vulnerabilidade já na semana anterior, rendendo-se à bebedeira após perder o emprego em uma loja de departamento e compreender que a cor de sua pele representava sua falta de qualquer prospecto. Ruby foi construída como uma espécie de escape para a comunidade negra do meio-oeste estadunidense, investindo em habilidades musicais irretocáveis – mas e quanto a seus sonhos?



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Em “Strange Case”, a importância de Ruby entra em conflito exuberante quando enfrenta seus demônios interiores e percebe que as coisas não são tão simples quanto parece. Afinal, conforme ela mesma nos conta, ela insurge resignada dentro de uma segregação secular que insiste em colocar afrodescendentes em um patamar de “incapacidade”, subjugados às vontades de uma supremacia branca que dá as caras desde sempre na história. Quando cruza caminho com William (Jordan Patrick Smith), um dos misteriosos vassalos da perigosa Christina (Abbey Lee), ele oferece uma oportunidade de ver e ser tratada pelas pessoas de outro modo: ele a transforma em uma elegante mulher branca, drenando sua aparência condenada por outrem e permitindo que ela faça o que bem entender.

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A verdade é que as referências à ‘Metamorfose’ de Franz Kafka são o que mais nos chamam a atenção, permitindo que as viscerais sequências sejam perscrutadas por coreografias insanas e de tirar o fôlego, tomadas por rios de sangue e um apreço pelo horror corporal das décadas de 1960 e 1970 nunca antes visto dentro desse universo televisivo. Mas não podemos tirar as cruciais alegorias que se escondem por trás dos escapes cômicos e das quebras de expectativa: Ruby aceita de bom grado encarnar uma persona que, em qualquer outra circunstância, seria sua algoz; tomando a identidade de Hillary (que é interpretada pela momentaneidade sagaz de Jamie Neumann), Mosaku deixa transparecer raiva, frustração e sublimação com um simples relance do olhar, mantendo-se conectada com a trágica descendência que persegue as pessoas de sua raça até os dias de hoje.

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Em uma catártica transformação, somos levados a acreditar que William, um cientista louco cujo principal objetivo é permitir que os humanos consigam se metamorfosear, tem a bagagem sindromática do “cavaleiro branco” – mas não é isso: quando chegamos ao final do terceiro ato, essa poção mágica que Ruby toma com tanta voracidade realmente lhe deu o dom de enxergar o que se esconde na obscuridade daqueles que se dizem superiores e, libertando-se de amarras que lhe foram dadas no momento em que nasceu, desconta uma cólera copiosamente internalizada em quem merece sofrer. E essa recorrência, guiada pela personagem em questão, é força-motriz do capítulo e estende simbólicas ramificações para as outras subtramas – convergindo ou divergindo do conceito original.

A temática libertária estende seus braços para a complexa personalidade de Monstrose Freeman (Michael K. Williams). De um lado, o ranzinza homem se mostra duro e intransponível para com o filho, Atticus (Jonathan Majors), querendo protegê-lo da maldade de seu milenar legado; de outro, esconde os verdadeiros sentimentos, como sua paixão secreta, Sammy (Jon Hudson Odom), e sua sexualidade que definitivamente não era bem vista no final dos anos 1950. E, com refinamento artístico on point, a diretora Cheryl Dunye apresenta aos fãs as belezas do cenário drag queen da época e de que forma os mundos performativo e filosófico conseguiam se cruzar dos modos mais inesperados possíveis – enquanto Tic comprava a reconfortante bolha que o pai tentava vender-lhe.

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Lovecraft Country aposta suas fichas em uma dramatização fantástica que, afastando-se da solidez familiar das outras iterações, alcança uma coesão inesperada e cativante. Mais uma vez, a linearidade panfletária de qualquer outra produção que resolva explorar temas sociais é mascarada pela ambientação do terror e do suspense – e de um enredo que ainda tem muito para nos contar.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Se achávamos que Lovecraft Country não conseguiria superar a si mesmo, erramos – e erramos feio. O quinto episódio da temporada de estreia da nova sensação da HBO prometia ser apenas mais um drama racial, mas se transformou em uma crítica sobrenatural com alguns dos melhores efeitos especiais já vistos pela emissora, enquanto infundida com uma preciosidade narrativa de tirar o fôlego e de colocar em perspectiva que a releitura de Misha Green acerca do clássico romance assinado por Matt Ruff não veio para brincar. E, apesar dos pontuais deslizes, é inegável dizer que a produção mantém um nível altíssimo de qualidade à medida que pavimenta uma atmosfera tensa, chocante e narcótica que promete talvez o maior season finale de 2020 depois de ‘Watchmen’.

Seguindo a estética antológica (e agora lapidada) de Green, chegou a vez de Ruby (Wunmi Mosaku) roubar os holofotes em uma atuação magnífica e tocante em praticamente todos os aspectos. A meia-irmã de Leti (Jurnee Smollett), que permanecia nas sombras dos episódios como uma espécie de consciência humanizada das incursões exageradas dos personagens ao seu redor, começou a demonstrar grande vulnerabilidade já na semana anterior, rendendo-se à bebedeira após perder o emprego em uma loja de departamento e compreender que a cor de sua pele representava sua falta de qualquer prospecto. Ruby foi construída como uma espécie de escape para a comunidade negra do meio-oeste estadunidense, investindo em habilidades musicais irretocáveis – mas e quanto a seus sonhos?

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Em “Strange Case”, a importância de Ruby entra em conflito exuberante quando enfrenta seus demônios interiores e percebe que as coisas não são tão simples quanto parece. Afinal, conforme ela mesma nos conta, ela insurge resignada dentro de uma segregação secular que insiste em colocar afrodescendentes em um patamar de “incapacidade”, subjugados às vontades de uma supremacia branca que dá as caras desde sempre na história. Quando cruza caminho com William (Jordan Patrick Smith), um dos misteriosos vassalos da perigosa Christina (Abbey Lee), ele oferece uma oportunidade de ver e ser tratada pelas pessoas de outro modo: ele a transforma em uma elegante mulher branca, drenando sua aparência condenada por outrem e permitindo que ela faça o que bem entender.

A verdade é que as referências à ‘Metamorfose’ de Franz Kafka são o que mais nos chamam a atenção, permitindo que as viscerais sequências sejam perscrutadas por coreografias insanas e de tirar o fôlego, tomadas por rios de sangue e um apreço pelo horror corporal das décadas de 1960 e 1970 nunca antes visto dentro desse universo televisivo. Mas não podemos tirar as cruciais alegorias que se escondem por trás dos escapes cômicos e das quebras de expectativa: Ruby aceita de bom grado encarnar uma persona que, em qualquer outra circunstância, seria sua algoz; tomando a identidade de Hillary (que é interpretada pela momentaneidade sagaz de Jamie Neumann), Mosaku deixa transparecer raiva, frustração e sublimação com um simples relance do olhar, mantendo-se conectada com a trágica descendência que persegue as pessoas de sua raça até os dias de hoje.

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Em uma catártica transformação, somos levados a acreditar que William, um cientista louco cujo principal objetivo é permitir que os humanos consigam se metamorfosear, tem a bagagem sindromática do “cavaleiro branco” – mas não é isso: quando chegamos ao final do terceiro ato, essa poção mágica que Ruby toma com tanta voracidade realmente lhe deu o dom de enxergar o que se esconde na obscuridade daqueles que se dizem superiores e, libertando-se de amarras que lhe foram dadas no momento em que nasceu, desconta uma cólera copiosamente internalizada em quem merece sofrer. E essa recorrência, guiada pela personagem em questão, é força-motriz do capítulo e estende simbólicas ramificações para as outras subtramas – convergindo ou divergindo do conceito original.

A temática libertária estende seus braços para a complexa personalidade de Monstrose Freeman (Michael K. Williams). De um lado, o ranzinza homem se mostra duro e intransponível para com o filho, Atticus (Jonathan Majors), querendo protegê-lo da maldade de seu milenar legado; de outro, esconde os verdadeiros sentimentos, como sua paixão secreta, Sammy (Jon Hudson Odom), e sua sexualidade que definitivamente não era bem vista no final dos anos 1950. E, com refinamento artístico on point, a diretora Cheryl Dunye apresenta aos fãs as belezas do cenário drag queen da época e de que forma os mundos performativo e filosófico conseguiam se cruzar dos modos mais inesperados possíveis – enquanto Tic comprava a reconfortante bolha que o pai tentava vender-lhe.

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Lovecraft Country aposta suas fichas em uma dramatização fantástica que, afastando-se da solidez familiar das outras iterações, alcança uma coesão inesperada e cativante. Mais uma vez, a linearidade panfletária de qualquer outra produção que resolva explorar temas sociais é mascarada pela ambientação do terror e do suspense – e de um enredo que ainda tem muito para nos contar.

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Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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