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Crítica | Lumière! A Aventura Continua — O documentário que prova por que o cinema nunca morrerá


Há uma frase frequentemente atribuída a François Truffaut segundo a qual o cinema nasce do encontro entre a verdade do mundo e a força do espetáculo. Verdadeira ou não em sua formulação literal, a ideia funciona como ponto de partida simbólico para pensar toda a história da sétima arte. É nesse espírito que se insere Lumière! A Aventura Continua, documentário dirigido por Thierry Frémaux que revisita a origem do cinema a partir dos irmãos Lumière, responsáveis pela primeira projeção pública de imagens em movimento — gesto fundador daquilo que hoje chamamos de cinema.

Desde sua primeira exibição pública paga, o cinema se afirmou como uma arte singular, capaz de transformar o real em experiência coletiva, sensorial e emocional. Nesse percurso histórico, é impossível não evocar Jean-Luc Godard, que costumava afirmar que o cinema fala de tudo e que, portanto, pouco sentido haveria em falar de outra coisa além dele próprio.



Se Truffaut e Godard são fundamentais para pensar o cinema francês, isso se deve à marca histórica que deixaram — uma influência que permanece viva. Em 2025 no Festival de Cannes, por exemplo, Richard Linklater lançou Nouvelle Vague, homenagem ao processo de filmagem de Acossado, um dos títulos mais emblemáticos do movimento, reafirmando como essa herança segue registrada na memória e no imaginário cinematográfico contemporâneo.

Um documentário dedicado ao nascimento do cinema é, portanto, ao mesmo tempo uma homenagem e um lembrete de que a história da arte só avança graças a gestos ousados. Não é casual que, ao falar dos Lumière, Thierry Frémaux — também diretor do Festival de Cannes — dialogue com cineastas como Truffaut, Godard, Agnès Varda e outros nomes centrais dessa tradição. A França, frequentemente considerada o berço do cinema, reafirma sua própria história ao revisitar, preservar e celebrar continuamente essa arte.

Quantas vezes já ouvimos falar dos primeiros filmes, como A Saída da Usina (1985) ou A Chegada de Um Trem na Estação (1985)? A célebre história de que o público teria fugido da sala ao ver o trem se aproximando é hoje tratada como exagero, mas ela traduz algo essencial: desde o início, a imagem em movimento provoca uma conexão quase mágica. O cérebro reconhece rostos, lugares e gestos; acreditamos, ainda que por instantes, que fazemos parte daquilo que vemos. Criamos vínculos com outros seres humanos por meio da representação.

O documentário reúne mais de 120 filmes inéditos dos irmãos Lumière, restaurados pelo Centro Nacional do Cinema e da Imagem Animada (CNC) em parceria com o Institut Lumière. São imagens que nunca haviam sido exibidas ao público e que agora ganham nova vida na tela. Lumière! A Aventura Continua é, assim, como assistir a mais de uma centena de filmes dentro de um único longa, conduzidos por uma narração que combina emoção, contexto histórico e uma paixão declarada pela arte cinematográfica.

Não por acaso, o filme foi exibido em sessão especial no Festival de Cannes e lançado na França em 19 de março de 2025 — data simbólica que marca os 130 anos do primeiro filme da história do cinema, rodado por Louis Lumière na rue Saint-Victor, em Lyon. A estreia no Brasil ocorre próxima a outro marco fundamental: 28 de dezembro de 1895, quando aconteceu, no Salon Indien do Grand Café, em Paris, a primeira exibição pública paga de cinema. O longa dialoga diretamente com Lumière! A Aventura Começa (2017), primeiro filme-homenagem de Frémaux, igualmente apoiado no vasto acervo dos irmãos franceses.

Esses dois momentos — o primeiro dia de filmagem e o primeiro encontro com o público — estruturam a memória do cinema tanto como arte quanto como experiência coletiva. Graças ao minucioso trabalho de restauração, o espectador descobre não apenas a história, mas também a técnica, a curiosidade e a ousadia dos Lumière. Percebe-se que o cinema nasceu de forma simples e quase improvisada, com uma câmera na mão — algo que dialoga, curiosamente, com a produção de imagens na era contemporânea dos vídeos curtos e das redes sociais.

O filme também recupera registros essenciais da ficção nascente, como O Regador Regado (1895), considerado o primeiro filme de ficção da história do cinema. Em seus 93 minutos, o documentário se afirma como um gesto de cinefilia assumida, celebrando a permanência do cinema como uma arte viva, em constante reinvenção.

Indicado ao Prêmio Lumière da Imprensa Internacional e com grandes chances de figurar entre os destaques do César, o “Oscar francês”, o filme confirma a relevância de Thierry Frémaux ao transformar sua erudição e seu amor pelo cinema em uma experiência acessível e envolvente para o público contemporâneo.

Mais do que um resgate histórico, Lumière! A Aventura Continua propõe uma reflexão sobre o que colocamos diante da câmera e sobre como essas imagens atravessam o tempo. Trata-se de uma homenagem luminosa a uma arte que, 130 anos depois, continua a nos observar — e a nos emocionar — de volta.

Distribuido pela Imovion, Lumière! A Aventura Continua chega aos cinemas brasileiro no dia 18 de dezembro de 2025, após estreia no 78ª Festival de Cannes.

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Abraccine, Fipresci e votante internacional do Globo de Ouro. Nascida no Rio de Janeiro, mas desde 2019, residente em Paris, é apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.
Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Abraccine, Fipresci e votante internacional do Globo de Ouro. Nascida no Rio de Janeiro, mas desde 2019, residente em Paris, é apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.
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