É muito difícil encontrar alguma pessoa que nunca tenha ouvido falar dos contos dos Irmãos Grimm. Dentre suas obras mais famosas, podemos citar ‘A Bela Adormecida’, ‘Rapunzel’, ‘Cinderela’ e muitos outros – que foram imortalizados em versões mais sombrias com o filme homônimo lançado em 2005. Entretanto, é ‘João e Maria’ que funciona como uma das narrativas mais fantásticas e que até hoje é passada de boca e boca, encantando as crianças e ensinando-lhes algumas lições de moral bem-vindas e amedrontadoras. O enredo original gira em torno dos dois irmãos titulares que são abandonados na floresta e acabam cruzando caminho com uma casa de doces, lar de uma terrível bruxa que os prende para se alimentar deles.
Seguindo os passos dos inúmeros remakes e readaptações de clássicos da literatura mundial, o diretor Oz Perkins (‘I Am the Pretty Thing That Lives in the House’) resolveu imprimir sua própria perspectiva para a trama, desconstruindo-a e reerguendo-a dentro de uma atmosfera ainda mais horrenda que resgata (ou ao menos tenta resgatar) os melhores estilos de filmes de terror. Entretanto, o resultado final não é tão espetacular quanto pensamos e não aproveita todo o potencial que cultiva nas primeiras cenas e até mesmo nos trailers, ficando no meio do caminho. Na verdade, Perkins canaliza seus esforços para o tecnicismo do longa-metragem, preferindo arquitetar um cenário deslumbrante em vez de lapidar um roteiro excessivamente metafísico e filosófico que sai de lugar nenhum e chega a nenhum lugar.
Antes de mais nada, ‘Maria e João: O Conto das Bruxas’ procura se situar no tempo e no espaço, voltando séculos no passado para um pequeno vilarejo tomado pela peste e pela total desesperança. Lá, Maria (Sophia Lillis) e João (Sam Leakey) procuram ao máximo encontrar algum trabalho para levarem comida para casa, que está à beira da ruína depois da morte do pai. É a partir dessa necessidade de sobrevivência que o roteiro, assinado por Rob Hayes, se curva a um amadurecimento obrigatório e traz elementos do mundo adulto para duas crianças que foram forçadas a abandonar sua infância – ainda que João ainda tenha algumas brechas para se manter esperançoso e ingenuamente atado a um falso otimismo. Eventualmente, a matriarca da família os expulsa de casa e ambos adentram a floresta para encontrar um novo lar.
A história já é conhecida por todas: depois de se embrenharem nas densas árvores nórdicas, eles encontram uma misteriosa casa isolada do resto do mundo e com um convidativo cheiro de comida – uma fraqueza imediata de quem já se rendeu à abarcia. Logo na transição do primeiro para o segundo ato, percebe-se que Perkins decide tornar as coisas mais palpáveis e opta por não transformar a moradia de Holda (Alice Krige) em uma construção de doces, arrancando a petrificação do público a partir de uma estrutura geométrica ao extremo, como a ponta triangular de um iceberg insurgindo no meio do nada.
Tudo a partir daí derrapa em deslizes amadores que vão desde a delineação da narrativa até o processo de edição. Na verdade, a obra é autofágica; procura desenvolver um pano de fundo complexo com o apoio de diálogos existencialistas e metafóricos, mas torna-se pedante à medida que nos aproximamos do final e percebemos que sua essência foi perdida há muito tempo. A começar, o diretor parece preso a um passado remoto e destrincha-se em dois narradores – o primeiro se restringindo à voz perturbada e agourenta de Krige; o segundo, encontrando-se na voz mais cândida de Lillis. Ambas mergulhando de cabeça nas versões de fábulas de terror que ouviram quando criança e que estão prestes a ganhar mais um capítulo – mas o intimismo não muda em nada o desenrolar dos eventos e não auxilia em nada nos arcos do personagens (que também não estão fixados numa estrutura de apoio sólida).
De qualquer forma, não podemos tirar mérito de alguns pontos aplaudíveis da produção. De um lado, o estilo artístico de Perkins funde-se num equilíbrio perfeito entre o expressionismo alemão, utilizando de sua literariedade para condensar os personagens em uma névoa constante e inebriante, e da perspectiva noir dos filmes detetivescos (principalmente quando um dos protagonistas está prestes a fazer alguma descoberta ou ser engolfado numa revelação cosmológica); do outro, as performances de Krige e Lillis é soberba, afastando-se de seus trabalhos anteriores ao mesmo tempo que traz certos elementos para as telonas. Apesar dos picos de glória supracitados, tudo não passa de uma medida paliativa para uma montagem datada e uma resolução ridiculamente fácil para a história apresentada no começo.
‘Maria e João’ prende a si mesmo numa zona de conforto frustrante, brincando na superfície de algo que poderia ser bem maior – ou ao menos que poderia se contentar com as expectativas que cultivou desde o início. Ademais, é provável que o longa seja satisfatório ou aprazível o bastante para abrir espaço para um suposto universo compartilhado que já foi premeditado pelo próprio Perkins.