sábado, abril 20, 2024

Crítica | Mindhunter – Segunda Temporada Mantém o Nível de Excelência

Conflitos Raciais

Produzido pelo diretor David Fincher e pela atriz Charlize Theron, o seriado investigativo Mindhunter estreou sua segunda temporada na última sexta-feira, dia 16 de agosto. Sem se desviar de sua proposta original, o segundo ano consegue ser ainda maior e melhor – seja no desenvolvimento de seus personagens ou em seus temas pungentes e pra lá de atuais. E para relembrar um pouco sobre o que fala Mindhunter, confira nossa análise da primeira temporada abaixo.

Crítica | Mindhunter – Agentes do FBI estudam psicopatas na nova série de David Fincher

A esta altura todos devem estar mais do que escolados no estilo do programa: investigação de agentes do FBI e da polícia sobre serial killers, através de muita conversa, entrevistas e pesquisas. A ideia interessante aqui é misturar ficção, através de três personagens principais criados para a obra, com horrendos crimes reais e seus algozes. E como havia sido prometido, os realizadores guardam alguns dos mais infames e assustadores psicopatas como as surpresas dos novos episódios – dos quais os três primeiros foram dirigidos pelo próprio Fincher, e os quatro finais pelo igualmente tarimbado Carl Franklin (O Diabo Veste Azul e Por um Triz), num total de nove episódios.

Assim como na primeira temporada, a série nos mostra um outro lado dos anos 1970 – época em que a história se passa. Geralmente, produções centradas na década fazem questão de enfatizar o “glamour” do período através de penteados, figurinos, decorações e toda direção de arte que vem junto. Em Mindhunter também temos isso, mas como pano de fundo, sem tirar o foco principal – já que os protagonistas  usam basicamente ternos e roupas formais de trabalho, e penteados adaptáveis aos dias de hoje (cabe aos coadjuvantes a identificação do período).

Fora isso, a narrativa segue uma estrutura específica desde o primeiro episódio. Acompanhamos o caso principal se desenrolar ao longo da trama: uma investigação de jovens negros assassinados em Atlanta, Georgia. Ao mesmo tempo em que os personagens aprendem mais sobre assassinos em série para os estudos que acabaram de implementar, visitando na cadeia algumas figuras bem icônicas do mundo do crime. Tudo para auxiliá-los na investigação do psicopata BTK (Bind, Torture, Kill – ou Amarra, Tortura e Mata), outro dos principais casos reservado para esta temporada, mas que só será desvendado na vindoura terceira temporada – o gancho é claro.

Conflito Racial

É curioso e muito bem-vindo que uma série com o potencial e qualidade de Mindhunter não desperdice a oportunidade e utilize a atenção que lhe é dada pelo público para tratar de questões muito atuais e mais em pauta do que nunca. E se na primeira temporada tínhamos o empoderamento feminino nos transformativos anos 1970, muito bem representado pela figura da estudante Debbie Mitford (Hannah Gross), a namorada do protagonista Holden Ford, que o desafiava o tempo todo e já o fazia pensar sobre a emancipação da mulher; nesta temporada outro tema fervoroso é colocado nos holofotes: o racismo e crimes contra negros.

Infelizmente, a namorada de Ford foi deixada de lado (bem, é verdade que não teriam onde encaixá-la) e uma nova personagem feminina – tão interessante quanto – é introduzida. À primeira vista soando como possível interesse romântico para o retraído personagem principal (novamente vivido por Jonathan Groff), o que seria válido por si só, a recepcionista Tanya Clifton (vivida pela bela Sierra Aylina McClain) dá uma guinada em seu “primeiro encontro” com o agente do FBI. Preocupada e insatisfeita com a incapacidade da polícia em encontrar o culpado por diversas mortes de meninos negros em Atlanta, a jovem mulher decidida o leva para uma conversa com líderes comunitárias e mães dos rapazes desaparecidos.

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Com uma América recém saída da segregação racial e ainda lutando pelos direitos civis de seus cidadãos, surge o caso que ficou conhecido como “o monstro de Atlanta”. Não ajuda em nada a esta panela de pressão o fato do meticuloso e caxias Ford ter traçado o perfil do possível assassino: um jovem negro de vinte e poucos anos; enquanto a comunidade afrodescendente exigia um culpado branco. Fato que faria a mesma comunidade explodir em ódio numa possível guerra racial. As pesquisas do agente, no entanto, perceberam que um menino negro jamais entraria no carro de um estranho se ele fosse branco, e se fosse o caso, ele seria facilmente identificado por algum membro da comunidade, já que utiliza sempre o mesmo modus operandi.

Depois de muito esforço, e o quase arquivamento do caso por falta de verba (o que incluiu um show em prol das vítimas encabeçado por Frank Sinatra e Sammy Davis Jr.), os crimes finalmente apontaram para Wayne B. Williams – outro assassino da vida real, e um dos poucos serial killers negros da história. Quem vive o psicopata é Christopher Livingston, numa performance extraordinária, num misto de segurança e viscosidade. Acompanhar seus embates com a polícia, desde seu primeiro encontro acidental, até as pequenas pistas colhidas pelos oficiais, as faltas de provas substanciais enquanto acompanhamos junto e fazemos o trabalho policial ao lado dos personagens, é mais extasiante do que qualquer perseguição de carro e tiroteio.

Outro fato muito bem trabalhado pelo roteiro é justamente a idiossincrasia implícita à questão racial, delicada por natureza devido a anos de abuso. “Você procura um jovem negro para este crime. Este é exatamente o perfil procurado para todos os outros crimes também”, esbraveja Tanya para Holden, na constatação de que sua descoberta irá estremecer qualquer relação planejada pelos dois, pelo fato de que agora ele também se tornou “o inimigo”. Algo similar adereçado pela já icônica The People Vs. OJ Simpson (2016).

Desenvolvimento de Personagens

A segunda temporada ganha mais tempo para desenvolver e humanizar seus jogadores principais, sem tirar o foco das investigações sobre serial killers – que é o tema de Mindhunter. Além de uma nova relação (de certo tipo) para o protagonista Holden, seus colegas de bureau ganham os holofotes desta vez. Holden era o personagem principal na primeira temporada, o novato com grandes ambições – e seu relacionamento com Debbie vinha em primeiro plano. Para a segunda temporada, os idealizadores jogam Holden para trás e trazem à tona as vidas e os problemas particulares de Wendy Carr (Anna Torv) e Bill Tench (Holt McCallany).

O que chama atenção é que ao mesmo tempo em que o roteiro humaniza tais personagens, dando-lhes adversidades que qualquer um de nós lida ou pode vir a encontrar facilmente em nosso dia a dia, tudo continua sendo analisado de um ponto extremamente psicológico, como uma extensão de suas vidas profissionais. Tais perfis traçados dizem muito sobre seus parceiros e, principalmente, sobre eles mesmos. A Dra. Carr, por exemplo, não gosta de se expor. Sempre muito fria e profissional, mantendo a postura no ambiente de trabalho e transparecendo somente sua posição hierárquica de comando. Comportamento que leva para sua vida pessoal e que torna muito difícil assumir sua opção sexual, naquela época um grande tabu. Entra em cena a garçonete Kay Manz (vivida por Lauren Glazier). As trocas entre as duas acarretam em trechos arrebatadores, indo profundo em suas personalidades. Providas, obviamente, por atuações de alto nível (apenas servindo ao roteiro impecável). Aliás, as atuações em geral são dignas de prêmios.

Por outro lado, Bill tem seus próprios demônios para lidar, quando seu pequeno filho envolve-se numa situação pra lá de bizarra, que instantaneamente evoca sua vida profissional, e o trabalho que realiza diariamente. Esta subtrama guarda um desenrolar igualmente melancólico e impactante.

Participações Especiais

Ed Kemper (Cameron Britton), a “estrela” da primeira temporada, um dos assassinos mais terríveis que o mundo já conheceu, volta numa aparição nesta segunda temporada – que tem seus próprios ícones do terror real. Além das investigações sobre o “monstro de Atlanta” e toda a repercussão racial que é tema deste segundo ano, e de “BTK”, estendida para o vindouro terceiro ano; a série apresenta algumas participações para lá de “especiais”.

No segundo episódio, dirigido pelo próprio Fincher, David Berkowitz, o “filho de Sam”, ganha os holofotes, vivido por Oliver Cooper. O psicopata que aterrorizou Nova York na década de 1970, já foi assunto do filme de Spike Lee, O Verão de Sam (1999), e inclusive é a punch line de um episódio da hilária Seinfeld. Em Mindhunter, o psicopata revela o segredo de sua “insanidade” – o que se mostra outro ponto saboroso do programa, reavaliar com nova perspectiva alguns dos casos mais aterradores da história recente norte-americana, muitos dos quais foram alvo de avaliações psicológicas precipitadas e equivocadas.

O prato principal, no entanto, vem servido com a chegada de Charles Manson no quinto episódio. Vivido novamente por Damon Herriman, intérprete do criminoso em Era uma Vez em Hollywood (atualmente em cartaz nos cinemas), de Quentin Tarantino, toda a mística em torno da figura demonizada do guru do ‘Helter Skelter’ ganha ênfase no programa. Desde o suspense de sua demora a vir falar com os agentes, até sua primeira aparição nas sombras antes de ser interrogado, tudo cria um ambiente gélido que nos prepara para ficar cara a cara com a mais pura encarnação do mal. O peso aqui vem todo servido pela atuação de Herriman, que nos faz voltar no tempo para qualquer entrevista real ou qualquer conhecimento prévio que tenhamos do maníaco. Além, é claro, do roteiro, que acerta nas minúcias, seja em sua insegurança pela altura, no discurso anárquico sobre sociedade ou no jogo de poder que fazia na prisão.

Mindhunter é dona de um estilo próprio, pronta para encantar grande parte dos espectadores, e desencorajar tantos outros – devido a sua narrativa deliberadamente lenta e, de certa forma, repetitiva. Os apreciadores irão encontrar um texto mais fervoroso, dono de questões ainda muito em pauta – e estrategicamente inseridas -, e personagens e seus arcos ainda mais bem trabalhados. Fora todos os outros quesitos impecáveis, como direção de arte, uma fotografia de cair o queixo, e a direção cirúrgica de alguns dos grandes cineastas americanos em atividade.  Imperdível.

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