Lançada sob forte desconfiança, Mulher-Hulk: Defensora de Heróis tinha como desafio superar a má primeira impressão deixada pelos trailers, que contavam com um CGI sofrido. Há casos em que dá para relevar esses defeitos em prol de uma boa trama, mas aquilo que o primeiro trailer mostrava era realmente complicado. Com visual de videogame, parecia que a Marvel estava prestes a lançar um de seus maiores fracassos. No entanto, com a série já finalizada, Mulher-Hulk conseguiu mesmo superar as expectativas e se firmar como uma das melhores produções que a Marvel já fez, principalmente no tangente às séries para o Disney+.
Só que uma coisa me chamou atenção: a quantidade absurda de ódio gratuito que a série vem recebendo. Além de ter acompanhado a produção semanalmente, até para fazer as análises que vocês leem aqui, consegui ter um envolvimento legal com os episódios por ver muitas situações -tristes- do mundo em que vivemos sendo trazidas para as telas com uma abordagem que aposta no bom humor, mas sem perder a seriedade dos temas em si. É uma série que tem tudo que uma boa história Marvel tem, com o adicional de debater temas que dialogam diretamente com o público feminino. E mesmo que você não seja mulher, é quase impossível que não reconheça e/ou lamente a maior parte das situações mostradas ali. Diante disso, é meio triste que a série venha recebendo até hoje, quase um mês depois do lançamento do último episódio, uma quantidade tão grande de ódio.
A história acompanha Jennifer Walters (Tatiana Maslany), uma advogada de Los Angeles que tem sua vida virada de ponta-cabeça após sofrer um acidente e acabar sendo infectado com o sangue de seu primo, Bruce Banner (Mark Ruffalo). Agora com o sangue irradiado correndo por suas veias, Jen passa a se transformar na Mulher-Hulk, com um diferencial: ela consegue manter a consciência e o controle quando vira Hulk. Então, vivendo sob essa nova e forte condição, Jen precisa aprender a lidar com o mundo se quiser continuar trabalhando e vivendo como uma mulher na casa dos 30 anos.
O primeiro ponto a ser destacado aqui é o trabalho de adaptação feito pela equipe criativa. Eles conseguiram unir o melhor que algumas das fases mais célebres dos quadrinhos tinham em uma única produção. Além disso, eles conseguiram integrar temas importantes dos dias atuais para fazer parte da vida da protagonista. É a tal da identificação junto ao público. Então, mesmo numa situação de claro poder, Jen continua exposta a situações lamentáveis, como assédio, perseguição, machismo, ghosting, revenge porn e por aí vai. Se você nunca viveu algo do tipo, provavelmente tem uma amiga, namorada ou familiar que já passou por isso. E a forma como esses problemas são mostrados é bem didática, o que só enriquece a série.
O roteiro da série é definitivamente um dos pontos fortes da série. Não só por essas questões já comentadas, mas por finalmente entender perfeitamente o formato de séries. Nos últimos dois anos, a Marvel vem investindo nesse formato para os streamings. Só que nem sempre as produções entenderam que eram séries, e não filmes de seis horas divididos em capítulos. Correndo contra esse erro, Mulher-Hulk trabalhou bem demais esse formato episódico, em que cada semana trazia um caso diferente e interessante para acompanhar. Inclusive, se quisessem fazer uma segunda temporada em que a Jen defendesse algum herói/ vilão bucha da Marvel por semana, acredito que o público acompanharia amarradão.
Falando nesses buchas, a forma como eles foram sendo introduzidos na série foi bastante orgânica, permitindo que expandisse o universo e trouxesse personagens que ninguém sequer pensou que um dia veriam nas telas. O único episódio que deixa uma sensação mais arrastada é justamente o do casamento, que traz uma das lutas corpo a corpo da protagonista contra a antagonista. Mas a justificativa dada pela própria Jen, que reconhece ante ao público que esse episódio é ridiculamente anticlimático, é tão boa que dá pra fazer vista grossa. Afinal, casamento de amigo nunca vem em boa hora mesmo.
Aproveitando que toquei no assunto da justificativa da protagonista para o público, a quebra da quarta parede, habilidade clássica da Jen na HQs, era uma grande preocupação de minha parte. Isso porque é uma ferramenta divertida, mas que precisa ser bem trabalhada, senão fica ridículo. E o uso dela foi bem equilibrado, nunca deixando que o público se desconectasse dos episódios. E, óbvio, eles chutam o pau da barraca no último episódio, trazendo exatamente aquilo que uma quebra de quarta parede numa produção inspirada em quadrinhos poderia trazer: um bate papo direto com seu “criador”.
Isso tudo só foi possível por conta de Tatiana Maslany, que também chegou ao papel de Jennifer Walters completamente desacreditada, por ser uma atriz baixinha e esmirradinha, que foge do visual da Jen das HQs. Porém, ela usou seu talento e carisma para construir uma Jen crível, divertida e cheia de complexos. Indo além, ela ser baixinha e miudinha deu um contraste fantástico para a construção de sua personagem, que odiava ser a Mulher-Hulk, mas que ganhava fisicamente tudo aquilo que sempre sonhou: ser uma mulher grande, forte, bonita e com cabelo brilhoso que chama atenção de todos por onde passa. Esse embate entre quem ela é permeia os episódios e faz parte de seu processo de aceitação. A atriz entende isso bem e abraça a personagem.
As participações especiais foram outro grande acerto da série. Trazendo alguns personagens importantes e outros completamente descartáveis do Universo Cinematográfico Marvel, Mulher-Hulk fez valer o conceito de universo compartilhado. São heróis, vilões e anti-heróis que existem nessa realidade, alguns com suas histórias prévias já trabalhadas anteriormente, outros não, mas que chegam na série prontos para enriquecerem a trama.
Assim, o Abominável (Tim Roth) ganha uma chance de mostrar seu ponto de vista sobre os eventos de O Incrível Hulk (2008) e ficar prontinho para ser usado novamente em futuras produções. O Wong (Benedict Wong) segue se mostrando pau pra toda obra, flertando com a magia e um humor mais sério, e, claro, o Demolidor de Charlie Cox, que ganhou uma nova roupagem – literalmente – e termina a série prontinho para sua produção que já está prevista para os próximos anos no Disney+. Tudo isso sem tirar o foco da verdadeira protagonista: Jennifer Walters.
Por fim, meu ponto favorito da série e provavelmente o responsável por tanto chororô um mês depois do fim do show: a metalinguagem. Como a série tem essa pegada humorística forte, ela aproveita a chance e foge um pouco do humor convencional e aposta numa paródia dos próprios fãs da Marvel. É muito divertido ver como eles brincam com os fãs de quadrinhos, com a pirataria dos produtos do MCU e com as próprias críticas a esse universo, como quando a Jen chega em frente ao Kevin Feige e diz que algumas pessoas consideram seu trabalho formulaico e repetitivo. Sensacional.
Da mesma forma, a série tira sarro da arrogância de uma galera que era excluída há alguns anos, mas que agora ganharam um breve holofote muito por conta das produções do estúdio, e já se acham superiores a outros por questões como gênero e preconceito. A série não diz que todo nerd é preconceituoso, mas é nítido para qualquer um que saia do próprio quarto pelo menos uma vez por dia, que há muito preconceito nesse grupo. O vilão da série ser um administrador do Reddit foi uma das melhores sacadas da série. E se você não se enquadra no rótulo de preconceituoso babaca, não precisa se ofender. Não é de você que a série está zombando. Agora, se você é o motivo da piada da série… Olha, ainda dá tempo de melhorar, porque é desse jeito mesmo que o mundo te vê.
Foi uma ação corajosa pra caramba da produção zoar justamente com seu próprio público e apontar a hipocrisia de alguns supostos fãs, que cobram fidelidade aos quadrinhos, mas que vieram a público reclamar, xingar e chorar justamente porque a série foi fiel aos quadrinhos.
Por conta desse hate todo que alguns seguem despejando sobre a série, fui rever a produção inteirinha de novo para ver se algum detalhe tinha escapado. Mas não. Mulher-Hulk: Defensora de Heróis segue o grande acerto da Marvel no ano até aqui. A única “fraqueza” da série talvez seja o núcleo coadjuvante, porque os amigos da Jen até servem como ferramenta de divulgação de easter eggs, mas não passam disso. Fora eles e o CGI, que realmente deixa a desejar (mesmo que não atrapalhe a imersão nesse universo), é uma série fantástica!
Mulher-Hulk: Defensora de Heróis está disponível no Disney+