sábado, dezembro 27, 2025

Crítica | Não Devore Meu Coração – Cauã Reymond segue fazendo boas escolhas no cinema

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Um Winding Refn brasileiro

Muito se fala sobre a falta de diversidade dentro de produções nacionais quando o quesito é cinema de gênero. E se ainda engatinhamos em outros tipos de filme, que não o drama social, é bom agradecer e parabenizar os artistas de nosso país que se propõem a abraçar tal causa. Temos, por exemplo, os cineastas paulistanos Juliana Rojas e Marco Dutra, especialistas em terror autoral. Nesse âmago encontra-se também o astro da televisão brasileira Cauã Reymond.

O ator vem se especializando em projetos arriscados, fora do padrão do que é produzido aos montes em nosso cinema. Nestes dois últimos anos, Reymond protagonizou, produziu e empurrou com seu nome obras com tramas relativamente similares, mas com propostas e públicos diferentes. Primeiro, foi Reza a Lenda (2016), vendido como um Mad Max tupiniquim, passado num tempo pós-apocalíptico somado a muitas pitadas de nossas tradições e realidade. No filme, Cauã interpretou Ara, líder de uma gangue de motoqueiros, singrando o sertão futurístico.

No novo Não Devore Meu Coração, Reymond é outra vez um motoqueiro membro de uma gangue, mas a geografia é trocada para o Mato Grosso do Sul, na fronteira com o Paraguai. O terceiro longa escrito e dirigido por Felipe Bragança (roteirista de O Céu de Suely, Heleno e Praia do Futuro) também não é uma ficção pós-apocalíptica, mas muito bem parece focar numa outra realidade, num mundo paralelo longe do nosso.



Estranhamente, o novo filme de Bragança é tão peculiar, que remete aos trabalhos do dinamarquês Nicolas Winding Refn (Drive, Apenas Deus Perdoa e Demônio de Neon). É um filme de sensações, onde a estética consegue se sobrepor, sem eliminar completamente diversas interpretações – intrincadas num emaranhado em seu subtexto – a serem concluídas pelo espectador. Assim como Refn, Bragança não entrega um filme de fácil digestão e compreensão, porém, de acesso mais amplo por comparação.

Em duas tramas paralelas, dois irmãos vivendo numa cidade quase desértica e poucas aspirações. Fernando (Reymond), o irmão mais velho, sonha com uma vida melhor, longe do local e culpa a separação dos pais por seu destino. Enquanto não consegue se libertar, ganha a vida como pequeno criminoso, parte de uma gangue de motoqueiros. O estilo dos membros, com figurinos espalhafatosos, codinomes, reuniões em festas, corridas noturnas e rivalidade com uma gangue de paraguaios, tudo banhado pela trilha sonora de arranjos sintéticos, traz uma atmosfera de ficção, no melhor estilo Warriors – Os Selvagens da Noite (1979). E esta é a metade que dialoga diretamente com os filmes do cineasta europeu citado, ou seja, certo surrealismo narrativo.

Já na segunda história, temos uma afetuosa trama de amor jovial e amadurecimento, com Joca (Eduardo Macedo), o irmão mais novo, ganhando os holofotes. O menino se deixa guiar por sua paixão pela sofrida Basano (Adeli Benitez), uma pequena garota paraguaia que encontra barreira não apenas nas limitações geográficas, declarando Joca e sua turma como inimigos jurados. Basano é conhecida como a “garota crocodilo” – a alligator girl do título em inglês que o filme recebeu (para o mercado estrangeiro). Uma menina de espírito livre, de pele tatuada, muito crente em seu destino, na espiritualidade de sua existência e em certo misticismo envolvendo lendas regionais e sua família. A pequena, tira o coração do protagonista metaforicamente, daí o título da obra. Literalmente, Joca terá um curso relâmpago nas frustrações do amor.

Os jovens atores são donos de muito carisma, em especial a menina Benitez, o verdadeiro achado do filme. E Reymond ganha muitos pontos por investir em obras assim, desempenhando outro trabalho sólido como ator.

A mescla das duas subtramas se dá de forma natural e complementar. Não soam deslocadas como se pertencessem a filmes distintos. Existe uma conexão entre os irmãos, e suas aspirações, vontades e lugares dentro da dinâmica familiar. Fora isso, o contrabalançar de teores contidos nessas histórias bem diferentes, chega como temperos doce e salgado na confecção de um saboroso prato cinematográfico. Existem diversas referências implícitas no longa, em especial no que diz respeito a gêneros de cinema. Embora categoricamente não seja recomendado para todos os gostos, aqueles que tem paladar por descobrir novos estilos, outros sabores e olhar cinema de uma perspectiva sempre diferente, irão conseguir apreciar a tentativa ousada, mas muito corajosa e eficaz do diretor. Um dos melhores filmes nacionais do ano.

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Pablo R. Bazarello
Crítico, cinéfilo dos anos 80, membro da ACCRJ, natural do Rio de Janeiro. Apaixonado por cinema e tudo relacionado aos anos 80 e 90. Cinema é a maior diversão. A arte é o que faz a vida valer a pena. 15 anos na estrada do CinePOP e contando...
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