Crítica Netflix | ‘Adeus, June’ – Estreia de Kate Winslet tropeça na ausência de visão

Lançado globalmente no dia 24 de dezembro pela Netflix, Adeus, June (Goodbye, June) se apresenta como um drama de despedida formatado para o período natalino. O filme, no entanto, carrega um peso simbólico que ultrapassa o calendário: trata-se da estreia de Kate Winslet na direção. Vencedora do Oscar por O Leitor (2009), Winslet agora assume o controle da narrativa — com resultados aquém da força que marcou sua trajetória diante das câmeras.

A curiosidade inicial em torno do projeto não se limita à mudança de função da atriz. O roteiro é assinado por Joe Anders, filho de Winslet, que também estreia como roteirista. Entre tantas primeiras vezes, instala-se uma sensação incômoda. O impulso por trás da obra parece menos uma urgência artística do que um gesto de legitimação familiar. Essa impressão se infiltra na obra e se manifesta no texto e na encenação padronizada.

Johnny Flynn como Connor, Helen Mirren como June em 'Adeus, June'. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)
Johnny Flynn como Connor, Helen Mirren como June em ‘Adeus, June’. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)

A trama acompanha os últimos dias de June (Helen Mirren), internada em um hospital enquanto a família se reúne para antecipar um Natal que talvez não volte a acontecer. Os quatro filhos retornam à casa dos pais trazendo conflitos apenas esboçados. Entre eles está Julia, personagem interpretada pela própria Winslet, mãe de duas crianças, uma no espectro autista. O papel sugeria uma abordagem complexa, mas acaba reduzido à disputa emocional com a irmã Molly (Andrea Riseborough). Desde a primeira cena, ambas são enquadradas de forma esquemática: a executiva bem-sucedida em oposição à dona de casa ressentida.

Helen (Toni Collette), a irmã distante, surge como um alívio cômico, enquanto Connor (Johnny Flynn), o filho que permanece na casa dos pais, ocupa uma posição ambígua entre cuidador e figura acomodada, com uma trajetória queer. O personagem mais injustiçado, no entanto, é o pai, Bernie (Timothy Spall). Ignorado pelos filhos e emocionalmente invalidado, ele ainda é empurrado para um lugar de culpa, pedindo desculpas por não ter “cuidado melhor” de June. O filme tenta extrair empatia dessa dinâmica, mas acaba minando seus próprios personagens com atitudes que não encontram sustentação dramática.



Andrea Riseborough como Molly e Kate Winslet como Julia em 'Adeus, June'. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)
Andrea Riseborough como Molly e Kate Winslet como Julia em ‘Adeus, June’. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)

O problema central de Adeus, June está nas escolhas formais. A mise-en-scène abdica de qualquer impacto visual em favor de diálogos explicativos e reiterativos. As imagens raramente comunicam algo por si mesmas, tudo precisa ser dito, explicado, reforçado. O resultado é um cinema que desconfia da própria capacidade expressiva e se comporta como um texto ilustrado. Ambientado majoritariamente em espaços fechados — especialmente quartos de hospital —, o filme não transforma o confinamento em tensão, apenas em clausura estética.

Essa limitação se evidencia ainda mais quando Adeus, June é colocado em perspectiva com As Três Filhas, de Azazel Jacobs. Também ambientado quase integralmente dentro de uma casa, o filme de Jacobs converte o sufocamento espacial em potência dramática. Ali, a dor não é verbalizada em excesso: manifesta-se nos silêncios, nos olhares desviados, nos corpos que hesitam entre o afastamento e o contato. As três irmãs — Carrie Coon, Natasha Lyonne e Elizabeth Olsen —, vindas de realidades distintas, tentam compreender quem era aquele pai em estado paliativo quando elas não estavam presentes. O embate revela ressentimentos reais.

Se As Três Filhas é uma xícara de café transbordante — espessa, quente, capaz de queimar —, Adeus, June se assemelha a um copo de água esquecido sobre a mesa. A comparação evidencia que o problema não está no tema, mas na execução: quando os ingredientes não dialogam, resta apenas a sensação de sorver palavras e imagens sem sabor.

Johnny Flynn, Andrea Riseborough, Timothy Spall, Kate Winslet e Fisayo Akinade em 'Adeus, June'. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)
Johnny Flynn, Andrea Riseborough, Timothy Spall, Kate Winslet e Fisayo Akinade em ‘Adeus, June’. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)

A diferença se cristaliza no desfecho. Em As Três Filhas, a cena final — marcada por uma conversa imaginativa, quase fantasmal — reorganiza as tensões acumuladas e produz um impacto emocional. Em Adeus, June, nada semelhante acontece. Não há catarse, ruptura ou imagem que permaneça. Apenas a confirmação de uma despedida anunciada, mas jamais verdadeiramente sentida.

Diante de outras estreias recentes de atores na direção — como Kristen Stewart em Cronologia da Água ou Harris Dickinson em Urchin —, o filme de Winslet soa cauteloso. Enquanto alguns arriscam linguagem e forma, Adeus, June escolhe o caminho mais seguro. Não falha por ser simples, mas por se conformar ao já conhecido, sem pulsão cinematográfica ou ambição estética.

Para uma artista cuja carreira foi construída a partir de escolhas ousadas e personagens memoráveis, como em Almas Gêmeas (1994), de Peter Jackson, e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), de Michel Gondry, essa estreia no comando das lentes revela menos uma nova voz autoral do que uma hesitação. No cinema, a emoção não se decreta. Constrói-se. E aqui, infelizmente, não chega.

Kate Winslet como Julia e Toni Collette como Helen em 'Adeus, June'. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)
Kate Winslet como Julia e Toni Collette como Helen em ‘Adeus, June’. (Crédito: Kimberley French/Netflix © 2025.)
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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Abraccine, Fipresci e votante internacional do Globo de Ouro. Nascida no Rio de Janeiro, mas desde 2019, residente em Paris, é apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.
Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Abraccine, Fipresci e votante internacional do Globo de Ouro. Nascida no Rio de Janeiro, mas desde 2019, residente em Paris, é apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.
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