Bertolt Brecht é considerado até hoje como um dos maiores dramaturgos e teóricos teatrais de todos os tempos – trazendo revoluções importantíssimas para o cenário do entretenimento com alusões e inflexões políticas. Um de seus textos mais famosos é, sem dúvida, o épico dramático ‘A Vida de Galileu’, que narra a vida do físico e matemático Galileu Galilei, acusado de heresia pela Igreja Católica Romana por ir contra a teoria geocêntrica adotada à época e por entrar em conflito com o pensamento teológico que se espalhava pela Europa. Agora, o texto ganha uma impecável adaptação pelo Núcleo TUSP – facilmente uma das melhores peças do ano e uma experiência que precisa ser conferida antes de sair de cartaz.
O cenário é simples, erguido na Sala Experimental do teatro e focado essencialmente no minimalismo: as paredes foram adornadas com desenhos em giz de elementos importantes para a trama, como os modelos de translação dos corpos celestes, bancos e mesa cinza-chumbo e uma didática cronologia que permite ao público acompanhar sem confusão a trajetória da carreira de Galileu. O cientista, que vinha ganhando proeminência no início do século XVII, tinha como objetivo colocar em xeque o pensamento datado acerca da astronomia que dominava a Itália e os países adjacentes a seu lar – promovido pela Igreja e pela cega compreensão de que o homem, criação divina, era o centro do universo (e que Deus estava no comando da inexplicabilidade do espaço). Entretanto, a partir de experimentos promovidos por si mesmo, Galileu compreendeu que a Terra é uma parte ínfima do cosmos e que, na verdade, o centro é o Sol e, em uma luta para levar a verdade às pessoas, ele poderia travar uma Guerra Santa contra a própria Inquisição e ter destino similar a Giordano Bruno (filósofo que foi queimado na fogueira).
Considerando que esta é uma peça de Brecht, a narrativa não é apenas uma biografia qualquer, e sim uma poderosa crítica que resgata elementos marxistas da luta de classes, do embate entre ciência e fé e da dominação de um capitalismo predatório que não se interessa pelos fatos, mas pelo controle das massas. Galileu insurge como força beligerante e à par dos cardeais e arcebispos que utilizavam o medo para manter a população na linha e garantir o domínio ideológico contra aqueles que não tinham como se rebelar e impor sua voz – e, na configuração desta peça, esse é o aspecto que rege o intrincado organismo cênico e que nos arrebata desde os primeiros minutos.
Cada engrenagem funciona com perfeição assustadora, refletindo o nível performático dos atores. O elenco, formado por Anita Prades, Bruna Alves, Camila Fávero, Duda Paiva, Giovana Telles, Ingrid Taveira, Jackson Gleizer, Júnior Moreira Bordalo, Lilian Alves, Malu Paixão, Mariana Nolla, Victória Pozzan e Vitor Julian, transmuta-se em vários personagens, todos roubando os holofotes com incursões arrepiantes e que confluem para um determinado propósito, mas sem abandonar idiossincrasias: os artistas que interpretam Galileu o encarnam em uma beleza quase sobrenatural, proferindo cada sentença com força descomunal e em uma difícil tarefa de equilibrar comédia e tragédia em um único lugar.
Mas não é apenas o personagem principal que nos rouba a atenção. Temos também a presença de outros nomes que fizeram parte da vida de Galileu, como o jovem Andrea Sarti, pupilo do cientista que, com o passar do tempo, é protagonista de um conflito geracional com o próprio mentor (vivido por Prades e Telles); os Cardeais Barberini e Bellarmino, representantes da Igreja trazidos à tona por uma atuação memorável de Fávero e Nolla; e Virginia, filha de Galileu que passa de uma sonhadora ávida a uma temente e traumatizada jovem que só quer que o pai sobreviva a uma possibilidade sólida de assassinato (interpretada pelas incríveis Paixão e Paiva. E, para nos guiar por essa epopeica jornada, a poética e convincente narração de Alves (facilmente um dos vários pontos altos da apresentação).
Nada disso poderia ser possível sem a direção certeira de René Piazentin. O texto de Brecht possui diversas camadas que, nas mãos das pessoas erradas, poderiam se perder em convencionalismos baratos e metáforas vencidas; aqui, o contrário acontece: cada reflexão sobre a sociedade e sobre a recusa de se enxergar a verdade são equilibradas em uma fortificada estrutura que não perde o ritmo a qualquer momento e que inclusive é delineada com sopros de suspense e angústia – e uma resolução esplêndido e que serve como um ótimo adeus a 2022. Mais do que isso, as sequências são arquitetadas de modo a ressoar na atualidade, principalmente no momento regado a obscurantismo e a negacionismo que enfrentamos no Brasil – e o mais apaixonante sobre isso é a afinidade que o elenco possui com um difícil texto, abraçando as palavras como se fossem velhas amigas.
A mais nova adaptação de ‘Galileu’ é uma obra-prima de encher os olhos e que permanece na memória para muito além dos aplausos finais. Descrever a experiência de vê-la é um trabalho árduo, mas posso dizer que, se Brecht estivesse vivo, estaria muito orgulhoso do resultado.
A peça está em cartaz no TUSP até o próximo dia 18 de dezembro. Para mais informações, clique aqui!