segunda-feira , 4 novembro , 2024

Crítica | O Banho do Diabo – PATRIARCADO e FANATISMO RELIGIOSO resultam em TERROR coletivo [Berlim 2024]

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Filmes visto no Festival de Berlim 2024

Baseado em relatos históricos, a premissa de Devil ‘s Bath / Des Teufels Bad (na tradução livre O Banho do Diabo) é sobre os horrores da vivência dos papéis de gênero, principalmente feminino, sob a pressão do patriarcado durante o sacro império austríaco, no século XVIII.

Logo no início, os diretores e roteiristas austríacos Veronika Franz e Severin Fiala – do arrepiante longa Boa Noite, Mamãe (2014) – apresentam a cena de choque a fim de colocar o público tenso e na expectativa para serem aterrorizados durante os minutos seguintes. Uma mulher caminha pela floresta com bebê nos braços e chega ao topo de uma alta cachoeira. De lá, ela joga o pequeno corpo ladeira abaixo pela correnteza. 

Em seguida, ela bate à porta da igreja e confessa seu crime. Como punição, amputação dos dedos dos pés e das mãos e decapitação, além de exposição em praça pública. Assim, Veronika e Severim deixam em aberto as motivações daquela mulher para confabulação e gancho com os espectadores. 

Ambientação montada e punição concedida, o enredo despede-se da mutilação e do lado sombrio e dá passagem para Agnes (Anja Plaschg), uma jovem radiante no dia do seu casamento. Celebrado com grande festa pela comunidade campestre, os rituais são passados um a um até a despedida da mãe e do irmão, cujo presente é um dedo amputado da mulher da sequência inicial. 

Uma cena simbólica e crucial para as interpretações do futuro de Agnes. Seria este dedo um amuleto, uma chave ou um presságio? Com devoção, Agnes beija o dedo e o coloca embaixo da sua cama ao pedir aos céus para ter um bebê. 

Ela prepara-se para consumação do matrimônio, mas este não ocorre na primeira noite, nem nas posteriores. O marido, Wolf (David Scheid), não possui entusiasmo para o ato. A narrativa insinua um interesse homossexual em relação a um colega próximo durante a festa de casamento, cujo o futuro será trágico. 

Em uma comunidade extremamente religiosa, os desvios de conduta são severamente punidos não somente pela igreja, mas também pelos seus membros. Como uma abelha zanzando o ninho, a mãe de Wolf (Maria Hofstätter) não sai da casa dos recém-casados e questiona todos os passos de Agnes. 

Eles precisam pagar a dívida da casa adquirida e o trabalho braçal de Agnes é mais do que almejado, é exigido. A jovem desejava o filho, o desejo e a proteção do casamento, mas tudo que ela recebe são reprovações, controle e humilhação. Na construção da personagem plebeia apenas com a fé como escapatória, O Banho do Diabo apresenta as crescentes frustrações da protagonista e o contínuo desejo de partir. 

Apesar de tratar-se de um filme baseado em fatos reais de três séculos atrás, a ambientação não deixa de se comunicar com o público atual e de construir pontes para a psique da protagonista. Rejeitada pelo marido emocionalmente e sexualmente, Agnes entrega-se à apatia, busca conforto em Deus, mas não encontra. Ela tenta retornar à casa da família, mas é enviada de volta. 

Em desespero e sem saída, Agnes engole pequenas doses de veneno de rato. O suficiente para mostrar sua pulsão de morte, isto é, desejo de fuga da realidade, mas não tanto para cometer o terrível pecado do suicídio. Neste momento, O Banho do Diabo é um filme que maltrata a figura feminina para o voyeurismo do terror. 

Contudo essa tortura não é gratuita, ela é latente e figurativa nos enlaços e denúncias da prisão dos desejos das mulheres, ainda mais em sociedade campesinas e religiosas. Para tentar “concertá-la”, o marido a encaminha para o “banho”, um local onde um clérigo fura dois pontos em suas costas passando uma linha.

Quando o “diabo chamá-la”, ela deve mexer a linha para afastar o mal através da dor da purificação. Seria este o tratamento de choque dessa comunidade no século XVIII? Se hoje diríamos que Agnes sofre de depressão por conta de uma decepção profunda, naquela época ela era tentada pelo diabo.

Ver Agnes desesperada para encontrar uma saída é o verdadeiro horror do filme. A tensão não pesa sobre um mistério ou o momento de resolução. Para tentar criar um “segredo”, os roteiristas omitem um pouco do terrível contexto histórico. As mulheres que não seguiam os preceitos religiosos e sociais, não serviam para comunidade. 

Agnes não é culpada por não gerar filhos, em um momento de completo delírio de obter este prazer, o objeto causa do desejo — como explica Jacques Lacan —, ela rouba um bebê na floresta. Seus atos são desesperados, pois ela está presa tanto pela amarga  infelicidade conjugal quanto pela crença da punição divina. 

Como experiência aterrorizante, O Banho do Diabo está longe de ser A Bruxa, de Robert Eggers, o longa não tem suspense latente ou reviravoltas. Ele faz um ciclo para explicar a cena inicial através de Agnes e deixa em evidência o começo de um próximo na horripilante sequência final, tão desconfortante quanto Midsommar – O Mal Não Espera a Noite (2019), de Ari Aster.

Único filme de terror na mostra competitiva do Festival de Berlim 2024, Veronika Franz e Severin Fiala colocam o gênero entre produções de artes e dramas políticos ao trazer atos macabros como denúncia de mentes maltratadas. Em outras palavras, O Banho do Diabo é a demarcação de uma época violenta às mulheres, onde a suas infelicidades —  por conta da repressão —  eram julgadas como histeria ou possessão demoníaca. 

 

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Letícia Alassë
Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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Logo no início, os diretores e roteiristas austríacos Veronika Franz e Severin Fiala – do arrepiante longa Boa Noite, Mamãe (2014) – apresentam a cena de choque a fim de colocar o público tenso e na expectativa para serem aterrorizados durante os minutos seguintes. Uma mulher caminha pela floresta com bebê nos braços e chega ao topo de uma alta cachoeira. De lá, ela joga o pequeno corpo ladeira abaixo pela correnteza. 

Em seguida, ela bate à porta da igreja e confessa seu crime. Como punição, amputação dos dedos dos pés e das mãos e decapitação, além de exposição em praça pública. Assim, Veronika e Severim deixam em aberto as motivações daquela mulher para confabulação e gancho com os espectadores. 

Ambientação montada e punição concedida, o enredo despede-se da mutilação e do lado sombrio e dá passagem para Agnes (Anja Plaschg), uma jovem radiante no dia do seu casamento. Celebrado com grande festa pela comunidade campestre, os rituais são passados um a um até a despedida da mãe e do irmão, cujo presente é um dedo amputado da mulher da sequência inicial. 

Uma cena simbólica e crucial para as interpretações do futuro de Agnes. Seria este dedo um amuleto, uma chave ou um presságio? Com devoção, Agnes beija o dedo e o coloca embaixo da sua cama ao pedir aos céus para ter um bebê. 

Ela prepara-se para consumação do matrimônio, mas este não ocorre na primeira noite, nem nas posteriores. O marido, Wolf (David Scheid), não possui entusiasmo para o ato. A narrativa insinua um interesse homossexual em relação a um colega próximo durante a festa de casamento, cujo o futuro será trágico. 

Em uma comunidade extremamente religiosa, os desvios de conduta são severamente punidos não somente pela igreja, mas também pelos seus membros. Como uma abelha zanzando o ninho, a mãe de Wolf (Maria Hofstätter) não sai da casa dos recém-casados e questiona todos os passos de Agnes. 

Eles precisam pagar a dívida da casa adquirida e o trabalho braçal de Agnes é mais do que almejado, é exigido. A jovem desejava o filho, o desejo e a proteção do casamento, mas tudo que ela recebe são reprovações, controle e humilhação. Na construção da personagem plebeia apenas com a fé como escapatória, O Banho do Diabo apresenta as crescentes frustrações da protagonista e o contínuo desejo de partir. 

Apesar de tratar-se de um filme baseado em fatos reais de três séculos atrás, a ambientação não deixa de se comunicar com o público atual e de construir pontes para a psique da protagonista. Rejeitada pelo marido emocionalmente e sexualmente, Agnes entrega-se à apatia, busca conforto em Deus, mas não encontra. Ela tenta retornar à casa da família, mas é enviada de volta. 

Em desespero e sem saída, Agnes engole pequenas doses de veneno de rato. O suficiente para mostrar sua pulsão de morte, isto é, desejo de fuga da realidade, mas não tanto para cometer o terrível pecado do suicídio. Neste momento, O Banho do Diabo é um filme que maltrata a figura feminina para o voyeurismo do terror. 

Contudo essa tortura não é gratuita, ela é latente e figurativa nos enlaços e denúncias da prisão dos desejos das mulheres, ainda mais em sociedade campesinas e religiosas. Para tentar “concertá-la”, o marido a encaminha para o “banho”, um local onde um clérigo fura dois pontos em suas costas passando uma linha.

Quando o “diabo chamá-la”, ela deve mexer a linha para afastar o mal através da dor da purificação. Seria este o tratamento de choque dessa comunidade no século XVIII? Se hoje diríamos que Agnes sofre de depressão por conta de uma decepção profunda, naquela época ela era tentada pelo diabo.

Ver Agnes desesperada para encontrar uma saída é o verdadeiro horror do filme. A tensão não pesa sobre um mistério ou o momento de resolução. Para tentar criar um “segredo”, os roteiristas omitem um pouco do terrível contexto histórico. As mulheres que não seguiam os preceitos religiosos e sociais, não serviam para comunidade. 

Agnes não é culpada por não gerar filhos, em um momento de completo delírio de obter este prazer, o objeto causa do desejo — como explica Jacques Lacan —, ela rouba um bebê na floresta. Seus atos são desesperados, pois ela está presa tanto pela amarga  infelicidade conjugal quanto pela crença da punição divina. 

Como experiência aterrorizante, O Banho do Diabo está longe de ser A Bruxa, de Robert Eggers, o longa não tem suspense latente ou reviravoltas. Ele faz um ciclo para explicar a cena inicial através de Agnes e deixa em evidência o começo de um próximo na horripilante sequência final, tão desconfortante quanto Midsommar – O Mal Não Espera a Noite (2019), de Ari Aster.

Único filme de terror na mostra competitiva do Festival de Berlim 2024, Veronika Franz e Severin Fiala colocam o gênero entre produções de artes e dramas políticos ao trazer atos macabros como denúncia de mentes maltratadas. Em outras palavras, O Banho do Diabo é a demarcação de uma época violenta às mulheres, onde a suas infelicidades —  por conta da repressão —  eram julgadas como histeria ou possessão demoníaca. 

 

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Crítica de Cinema desde 2012, jornalista e pesquisadora sobre comunicação, cultura e psicanálise. Mestre em Cultura e Comunicação pela Universidade Paris VIII, na França e membro da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Nascida no Rio de Janeiro e apaixonada por explorar o mundo tanto geograficamente quanto diante da tela.

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