Melissa Joan Hart tornou-se um fenômeno teen nos anos 1990 ao dar vida a uma das primeiras versões de Sabrina Spellman na indústria audiovisual. Depois de ter conquistado o público ao longo de sete ano, Sabrina alcançou o patamar de um dos grandes símbolos da cultura pop contemporânea – não demorando muito até que a personagem ganhasse uma nova roupagem para a Netflix. E, dessa forma, Roberto Aguirre-Sacasa (criador da fan-favorite ‘Riverdale’) dava vida a ‘O Mundo Sombrio de Sabrina’, adaptação dos quadrinhos homônimos da Archie Comics com uma pegada bem mais dark, mais sensual e mais envolvente que a comédia estrelada por Joan Hart.
É claro que, a princípio, grande parte dos fãs viu-se frente a frente com mais um reboot sem sentido e vazio no tocante – ainda mais levando em conta que o gatinho preto conhecido com Salem não teria uma fala sequer nos novos episódios. Felizmente, o charme encantador de seu elenco e um visual incrível nos livraram de quaisquer dúvidas e nos levaram em uma mística aventura pela Terra e pelo Inferno, seguindo as aventuras de uma personagem titular agora encarnada pela talentosa Kiernan Shipka. Agora, entrando no terceiro aguardado ciclo da produção, Sabrina mostra que ainda há muito a ser mostrado – e que algumas reviravoltas nunca são datadas o bastante para nos surpreender e nos engolfar em uma mixórdia de sentimentos sem igual.
Depois de ter conseguido prender seu pai, Lúcifer Estrela da Manhã (Luke Cook), em um receptáculo de carne conhecido como Aqueronte – no caso, canalizado para o corpo do sedutor Nick (Gavin Leatherwood), Sabrina resolve seguir seus instintos altruístas e viajar até o Inferno para resgatar seu namorado e livrá-lo tanto do pai quanto das garras da perigosa Lilith (Michelle Gomez), que se apropriou do trono do submundo e agora é responsável por manter o equilíbrio entre os três reinos. Como sempre, a jornada é mais difícil do que aparenta e obrigará os protagonistas a enfrentarem seus piores medos – e é aqui que jaz um dos principais deslizes da terceira iteração: a falta de exploração.
Diferente dos esforços anteriores, Aguirre-Sacasa e sua extensa equipe criativa parecem querer resolver as coisas em um frenético ritmo de causa e consequência, talvez para que consigam investir suas forças nas outras subtramas que, sem sombra de dúvida, têm peso dramático muito maior. Entretanto, os equívocos técnicos e artísticos ganham forma no momento em que a obra tenta alcançar uma espécie de releitura macabra de ‘A Divina Comédia – Inferno’, de Dante Alighieri, é a resume em uma sucessão de eventos previsíveis do começo ao fim. Felizmente, as performances do elenco principal e do coadjuvante (aqui com mais força do que nunca) auxiliam a lustrar os obstáculos em questão e pavimentar uma estrada mais sólida em direção a um belíssimo season finale.
Como já era de se esperar, Sabrina resgata Nick e dá início a um novo capítulo – o mais assustador de sua breve vida como bruxa: em meio a tantas mudanças, ela se exalta e acaba assumindo controle do submundo, impedindo que tudo desmorone. Porém, não demora muito até que Caliban (Sam Corlett), um golem humanizado, a desafie pela coroa e prometa para seus conterrâneos demoníacos que, caso vença o desafio, transformará o mundo dos mortais no décimo círculo do Inferno – cumprindo a promessa há muito feita pelo desertado Lúcifer.
Apesar das múltiplas linhas narrativas que ganham profunda arquitetura, é inegável mencionar como elas convergem para uma organicidade invejável, que em momento algum beira a saturação. Afinal, em meio a apenas oito episódios, era de se esperar que o roteiro se apressasse em diversos momentos para que as pontas soltas fossem amarradas – o que nos leva a entender o frenesi imagético dos capítulos iniciais. Além disso, enquanto Sabrina parte em uma missão para salvar mais uma vez o mundo do apocalipse, Zelda (Miranda Otto) assume a supervisão da Igreja da Noite e da Academia de jovens bruxos, até perceber que sua traição para o Lorde das Trevas trouxe corolários assustadores; Prudence (Tati Gabrielle) e Ambrose (Chance Perdomo) continuam em sua jornada para encontrar o Padre Blackwood (Richard Coyle) e matá-lo de uma vez por todas; e uma força antiga ameaça a continuidade da pequena Greendale (e a perpetuidade da vida humana).
Enquanto os gritantes deslizes de certa forma se tornam compreensíveis à medida que a série se eleva a caminhos nunca antes sondados, o showrunner também pontua com cautela sua necessidade e seu apreço por uma crível expansão mitológica. Se pararmos para pensar, a primeira temporada serviu como apresentação do religião satânica seguida pelos bruxos e bruxas locais; agora, mergulhamos em um conflito bélico de crenças sobrenaturais que data de séculos e que nos leva de volta ao passado, expandindo-se durante séculos e mais séculos até o momento em que os humanos acreditavam piamente na força dos Antigos. Não é surpresa que a iteração estabeleça relações com divindades clássicas das mitologias grega, romana e celta, trazendo para as telinhas versões modernizadas de Circe, Medusa, Pan – e até mesmo Judas, e Pôncio Pilatos.
Mais do que isso, é notável como a concepção antológica regente dos capítulos de outrora dá lugar para uma convecção transbordante de referências, fazendo questão de não meramente reapresentar rostos familiares e apresentar novas figuras, mas sim colocá-los em arcos reduzidos que culminem em uma explicação palpável o bastante para assegurar a envolvência dos telespectadores, mas fantasiosa o suficiente para que sejamos arrastados para um universo mítico e aterrorizante.
‘O Mundo Sombrio de Sabrina’ volta a se afastar de possíveis maniqueísmos, preferindo explorar desejos, fraquezas e medos, ao passo que não entrega de bandeja um fabulesco “final feliz”, e sim uma derradeira perspectiva que prenuncia o fim do mundo e a completa falta de esperança. Apesar de alguns erros, a qualidade da produção mantém-se lá em cima e, como era de se esperar, cultiva um terreno fértil para mais uma temporada.