Cultuado diretor de Vencer, Sangue do Meu Sangue e Belos Sonhos, o italiano Marco Bellocchio escolheu a máfia italiana como tema de seu mais novo filme, O Traidor. Na verdade, o foco está nos processos judiciais que prenderam centenas de mafiosos nos anos 80 e 90, após delações de importantes nomes da organização criminosa.
Coprodução entre Itália, Brasil, França e Alemanha, o longa conta a história real de Tommaso Buscetta (Pierfrancesco Favino), importante mafioso que foge para o Brasil diante de uma disputa entre duas famílias na Itália. No país, ganha muito dinheiro com o tráfico de drogas até que é preso e deportado. De volta à terra natal e motivado pelo assassinato de várias pessoas próximas, ele é convencido pelo juiz Giovanni Falcone (Fausto Russo Alesi) a colaborar com a justiça.
Desde o início, Bellocchio toma a decisão de humanizar Buscetta. Na verdade, ele vai além, colocando-o muitas vezes como vítima na tentativa de fazer o público ficar ao seu lado. Logo de cara, o vemos como um sujeito preocupado com o filho, que se envolve com drogas, e que sofre com os abusos da polícia brasileira. Por outro lado, seus crimes não são muito explorados. Sua relação com o tráfico e a origem da fortuna no Brasil é algo apenas sugerido, e mesmo os crimes mais graves na Itália são deixados de lado, ou tratados pelo viés mais humano, como sua recusa em matar um pai na companhia de seu filho.
Apesar de maniqueísta, não dá para dizer que o diretor errou em sua opção, afinal o público acaba se envolvendo com o carisma do personagem e passa até a torcer para ele. Além do que, no ato final, a produção passa a dar um tom mais melancólico a Buscetta e mostra alguns de seus atos brutais como integrante do crime.
Embora derrape nas cenas mais intimistas, e invista em flashbacks e sonhos de forma errática, O Traidor ganha muita força nas cenas de tribunal. Ali, Bellocchio cria uma verdadeira ópera e se assume como regente clássico. As sequências ajudam a desconstruir um pouco o glamour recorrente por trás da máfia, além de oferecerem um tom humorístico interessante ao longa. Estamos diante de um verdadeiro circo judicial e o cineasta mostra isso com precisão. Neste sentido, cabe valorizar ainda os trabalhos de design de produção e direção de arte.
A fotografia do filme, de responsabilidade de Vladan Radovic, captura bem o cenário cinzento da Itália e o “paraíso” de fuga que é o Brasil. Por sua vez, o roteiro peca em alguns momentos deixando a trama confusa, e não é ajudado pela montagem. Em alguns momentos, o filme conta com informações demais na tela. Temos cartelas na abertura e no final, e temos até uma cena com uma contagem, que busca retratar o número de assassinatos cometidos pela máfia, embora isso não esteja muito claro. Em outros, temos uma total falta de informação. Uma cena de tortura nos anos 70, no Brasil, é retratada logo após a prisão do mesmo personagem nos anos 80, dando a clara impressão de continuidade.
A brasileira Maria Fernanda Cândido vive Maria Cristina, esposa de Tommaso Buscetta. A atriz é a figura feminina principal em cena, mas quase sempre é deixada em segundo plano diante dos homens. É natural se pensarmos que o foco está na máfia e no sistema político e judicial dos anos 70 e 80, mas ao mesmo tempo o filme parece passar oportunidades de estabelecer a força da personagem, mesmo quando menciona que ela está sustentando a casa em um momento.
Il Traditore (no original) é uma obra interessante e envolvente, mas irregular. O espectador acompanha a trama de forma atenta e curiosa, mas os 145 minutos de duração parecem exagerados. Marco Bellocchio conseguiu fazer um grande filme de tribunal. Pena que o tribunal só ocupa 50% do tempo.
Filme visto durante o 52º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.