Sherlock Holmes é um dos personagens mais conhecidos da multifacetada indústria do entretenimento, migrando constantemente da literatura ao cinema e à televisão. Além das inúmeras produções inspiradas pela presença do icônico detetive, o próprio anti-herói foi protagonista de obras como a incrível série ‘Sherlock’, dos filmes estrelados por Robert Downey Jr. e até mesmo no spin-off ‘Enola Holmes’, que trouxe Henry Cavill para a nova roupagem do investigador. Agora, a Netflix retornou com mais uma investida original que fornece (ou ao menos tenta fornecer) uma perspectiva diferenciada a um grupo que já deu as caras nos escritos de Sir Arthur Conan Doyle: ‘Os Irregulares de Baker Street’.
Os Irregulares apareceram pela primeira vez em ‘O Signo dos Quatro’, romance lançado em 1888 e que trouxe Wiggins como o líder de crianças e adolescentes de rua que “tudo viam e ouviam”, responsáveis por trazer informações do “submundo” londrino a Holmes e ao seu parceiro, Dr. Watson. Na série da gigante do streaming, as coisas mudam um pouco de espectro: Beatrice “Bea” Cook (Thaddea Graham) comanda outros quatro indigentes e faz das circunstâncias mais adversas momentos de alegria e de humildade – nutrindo pela segurança e pelo bem-estar de todos, principalmente da irmã, Jessie (Darci Shaw). Vivendo nas favelas da capital inglesa, eles caem no radar do frio e calculista Watson (Royce Pierreson) e de seu sócio, Sherlock (Henry Lloyd-Hughes), que os contratam para investigar assassinatos e casos horrendos que mancham a reputação do lugar onde vivem.
Diferente das outras releituras do universo de Doyle, ‘Os Irregulares’ abre portas para um apreço mais sobrenatural e fantasioso; em outras palavras, os adolescentes, munidos apenas da confiança que têm um pelo outro, enfrentam vilões poderosos que buscam vingança e que adquiram poderes sombrios por uma Fenda que se abriu em algum lugar de Londres. Temos, por exemplo, o Mestre dos Pássaros (Rory McCann), que não aceitou a morte da esposa e da filha recém-nascida e passa as noites sequestrando bebês de suas casas; a Fada dos Dentes (Sheila Atim), uma jovem que perdeu todos que amava por causa das políticas incisivas do ducado real e cria clones para instigar pressuposições mortais entre os membros da high society; e Patricia Coleman-Jones (Olivia Grant), ex-atriz e membro de uma sociedade secreta que quer roubar todo o poder de Jessie.
Apesar das boas intenções, a série não é forte ou bem estruturada o suficiente para escapar das similaridades com construções conterrâneas ou das fórmulas. O showrunner Tom Bidwell procurou trazer as narrativas da época vitoriana para uma roupagem mais contemporânea, inclusive pela trilha sonora, que puxa elementos do dubstep e do electro-pop – que funcionam para nos manter atentos nas reviravoltas e nos ganchos dos episódios. Porém, outras abordagens pecam na rapidez e na previsibilidade (algo condenável quando pensamos na controversa assertividade de Doyle): conforme os casos vão se desenrolando, Bidwell e seu time de roteiristas deixa brechas óbvias demais que nos levam a compreender o desenrolar dos fatos antes do segundo ato dos capítulos.
Enquanto Bea, Jessie e o restante dos Irregulares ganha protagonismo igualitário – ainda mais com a chegada de Leopold (Harrison Osterfield), que esconde ser o herdeiro do trono e se passa por outra pessoa para se aproximar dos jovens e se encaixar em algum lugar -, alguns clássicos personagens do panteão de Holmes, como Mycroft e o Inspetor Lestrade, dão as caras como um fan service barato e que não auxilia em nada na complexidade das tramas e dos arcos. Certas escolhas também não fazem muito sentido quando comparadas ao panorama principal; por vezes, a base antológica é entregue de qualquer maneira e assemelha-se aos mesmos equívocos de ‘Once Upon a Time’ e ‘Supernatural, que se aceleram por nenhum motivo necessário.
A sórdida e sóbria fotografia é um dos poucos pontos que se salvam: há referências que estendem-se para os trabalhos de Emmanuel Lubezki e a teatralidade de ‘A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça’ e de ‘Desventuras em Série’ – tudo adornado com uma paleta que não foge do óbvio, mas tem um papel fundamental na descoberta dos podres que se escondem nos casebres, nos bordéis e nos bares. Mesmo assim, encontramos deslizes amadores que apostam nas vibrantes cores da realeza britânica em contraste com a vida urbana e operária, em exaustiva repetição. De qualquer forma, os pontos altos são ofuscados por furos no roteiro e um mandatório processo de choque que tenta impactar os espectadores.
Estendendo-se ao longo de oito episódios de aproximadamente uma hora cada, a produção vai e volta, chegando a lugar nenhum com revelações que passam longe de serem surpreendentes. O enlace romântico entre Bea e Leopold é premeditado desde o primeiro encontro através de fillers incessantes e cansativos – por mais que a atuação de ambos os atores seja ótima; Jessie, que carrega a travessia mais árdua e mais bem construída de todas, luta contra seus demônios anteriores e sacrifica a possibilidade de reencontrar a mãe para um bem maior, ainda que tenha sido enganada por pessoas de confiança; e talvez o único episódio realmente humano seja o season finale, com desenlaces tocantes sobre amizade e sobre a perda de um ente querido.
‘Os Irregulares de Baker Street’ é um erro da Netflix, mas pode ser aprazível àqueles que têm tempo de sobra. Passando longe de ser uma das melhores adições ao catálogo da plataforma, é interessante ver a química do grupo de jovens e de que forma eles se relacionam – mas recomendo ‘Enola Holmes’ como uma opção de entretenimento mais coesa em todos os aspectos.