Em 2019, pouco tempo depois de Vingadores: Ultimato se tornar um fenômeno, começaram a surgir boatos de que o Pantera Negra de Chadwick Boseman ocuparia a posição de liderança sob o vácuo deixado pela morte ou aposentadoria de Tony Stark (Robert Downey Jr.) e Steve Rogers (Chris Evans), centrando as novas fases no Rei de Wakanda. No entanto, o ator faleceu tragicamente após esconder um tratamento de câncer por anos, o que pegou a todos de surpresa. Por algum tempo, houve um debate se a produção deveria reescalar um ator para assumir o papel de T’Challa ou se deveriam matar o personagem também nos cinemas. Para evitar maiores delongas, a produção logo anunciou que o legado de Chadwick seria respeitado, já que ele se tornou um ícone para a Cultura Pop e transformou o primeiro Pantera Negra (2018) em um marco cultural.
Agora, com a chegada do filme, deu para entender melhor quais eram os planos para o personagem. A trama de Wakanda Para Sempre é mais complexa que a do primeiro filme, porque abraça mais o lado político de ter uma nação africana com acesso exclusivo ao metal mais valioso e com potencial bélico do mundo. Ao mesmo tempo, as novas regentes de Wakanda precisam lidar com essas questões internacionais e com o luto pela perda de seu filho ou irmão. E como se não bastasse, uma nova ameaça, o povo de Talocan, surge em mais uma intriga internacional, mas dessa vez com uma nação secreta ligada ao país africano pelo surpreendente acesso a recursos únicos.
Desde o primeiro filme, a questão do Vibranium e seu papel na comunidade internacional permitiam uma abordagem geopolítica cinematográfica bem interessante, mesmo que tenha ficado em segundo plano em prol do espetáculo sociocultural no longa de 2018. Na sequência, o diretor e roteirista Ryan Coogler consegue equilibrar mais esse ponto, tendo a diplomacia e os aspectos culturais como os pilares da história, complementada pelo luto e pela fé. Mas é interessante ver os projetos internacionais de Wakanda funcionando e levando adiante o legado de T’Challa de compartilhar seus recursos com crianças e jovens negros sendo direcionados para uma educação de qualidade, mostrando que essa é a base de toda sociedade desenvolvida. E mesmo com todas as homenagens prestadas ao Chadwick, acredito que nenhuma tenha sido tão certeira e significativa quanto as cenas em que as “sedes globais de Wakanda” estão funcionando, com os pequeninos uniformizados, estudando e produzindo arte nos colégios, aspirando a um futuro melhor. O trabalho de Chadwick Boseman, que só se tornou ator por ter seus estudos pagos por um benfeitor (no caso, Denzel Washington), transcendeu as telas, transformando o ator em ícone. Ele foi inspiração para milhões de fãs ao redor do mundo, mostrando que, se houver incentivo, nada é impossível. E ver a materialização de seu legado por meio desses colégios foi um acerto colossal da produção.
E com essa pegada de conflito internacional, quem ganhou muito destaque na sequência foi a Rainha Ramonda (Angela Bassett). Poucas pessoas nesse núcleo sofreram tanto quanto ela, sempre aguentando essas perdas calada, como se fosse inerente à rainha aceitar e engolir a seco essas situações sem ter o mesmo destaque dos reis. Agora, como a autoridade máxima da nação mais poderosa do mundo, ela está mais forte e imponente do que nunca. Literalmente. E isso passa diretamente pela caracterização da personagem, que agora usa roupas que mostram mais seus braços e ombros fortes, bem diferente dos trajes mais conservadores e cobertos do primeiro longa. Essa semiótica, que também a faz revelar seus cabelos brancos bem mais do que na aventura original, faz parte da construção de uma líder forte, sábia e imponente. Para completar, suas ações como regente são bem mais incisivas do que as do Rei T’Chaka e do Rei T’Challa.
E como já comentado anteriormente, um dos grandes desafios para a realeza wakandana é lidar com os conflitos internacionais e com o luto. Ou seja, além de rainha, Ramonda segue com suas responsabilidades de mãe, que precisa cuidar e aconselhar sua filha, a princesa Shuri (Letitia Wright), que é uma cientista brilhante e se apoia na ciência para recusar a espiritualidade e as tradições de seu país. O problema é que essa abordagem mais racional, que ignora o contato com o Sagrado, a joga num estágio de culpa do luto que toma conta de sua existência. E como existir diariamente se os únicos sentimentos que te guiam são a tristeza, a culpa e a raiva?
Nesse ponto, Shuri assume um papel fundamental na trama e termina o filme como uma personagem muito superior àquela menina brincalhona e descompromissada do primeiro capítulo. Aqui, a direção vai atrás do motivo pelo qual ela sempre foi desligada das tradições e de sua cultura, contando até mesmo com uma ligação familiar muito surpreendente. É possível enxergar que algumas das situações pelas quais ela é submetida foram pensadas para serem vividas pelo T’Challa quando Chadwick ainda estava vivo, mas como eles são personagens completamente diferentes um do outro, a tratativa mais passional dela acaba dando um ar mais agressivo que é muito bem-vindo.
Enquanto T’Challa era mais diplomático, mais benevolente, Shuri passou anos em segundo plano, como a irmã tímida, então era de se esperar que ela reprimisse seus sentimentos. Então, por mais racional que ela se considere, há uma hora em que esse acúmulo sentimental forma uma bola de neve e explode. E quando ela explode… De qualquer forma, o roteiro trata isso de forma bem intensa, acompanhando a jovem em sua jornada de autodescobrimento, de superação do luto e de contato com sua própria fé, ou quase.
Em meio a essas questões pessoais de Wakanda, surge a ameaça de Talocan, um reino submarino localizado nas profundezas dos oceanos, cujo povo teve origem mesoamericana. Seu líder é o lendário Namor (Tenoch Huerta Mejía) – lê-se ‘Námôr’ e o filme dá uma excelente justificativa para isso -, um filho da terra e dos mares, cujos poderes estão intrinsecamente ligados ao embate das duas nações fictícias do longa.
Ele é o grande protetor de seu povo, já que tem poderes praticamente divinos. Não à toa, ele é chamado de Kukulkán por seus comandados, a versão maia da lendária serpente emplumada asteca, o Quetzalcóatl. E com esse status de ‘Deus entre Humanos’, Namor é imbatível em seu mundo submarino. Ele é mais do que um líder, então seus comandados o seguem para onde ele for, garantindo a ele um exército praticamente imbatível e disposto a morrer por suas ideias e pela segurança de sua nação. Vale lembrar também que essa origem proposta no filme é diferente da versão dos quadrinhos, mas é um trabalho tão bem-feito e que funciona tanto em tela, que acaba se tornando uma das coisas mais fantásticas do filme. Essa chegada do Namor aumenta a tensão política e faz com que o longa abrace de vez a proposta de aventura.
Obviamente, um dos motivos dessa mudança foi distanciar o personagem do rival da DC, o Aquaman (Jason Momoa). Apesar do Aquaman ter sido inspirado no Namor nas HQs, o personagem da DC estreou antes nas telonas. Então, para evitar críticas e acusações de quem não conhece as histórias, esse distanciamento um do outro é bem lógico. Além disso, apostar em Talocan em vez de Atlântida é uma questão até mesmo de coerência no MCU, já que os mitos e lendas gregos foram justificados pelos Eternos (2021). E como eles sequer citaram a existência do Namor, faz sentido que se afastem dessa mitologia e apostem num reino submerso inspirado pelas tradições maias.
Sem contar que isso dá ao filme um valor cultural maior, explorando artes e tradições da Mesoamérica. Porém, ao mesmo tempo que isso agrega valor, Talocan acaba sofrendo um pouco com esse distanciamento do que foi apresentado pela DC nas telonas. Enquanto a Atlântida de Aquaman era excessivamente luminosa e colorida, Talocan tem uma iluminação mais sóbria e escura, replicando a sensação de estar mergulhando em uma caverna submarina. Não que isso chegue a incomodar, mas depois de construir tantos mundos mágicos tão vibrantes e coloridos, fica uma breve decepção de não explorarem tanto as cores vibrantes da arte mesoamericana para compor a criação desse reino.
Por outro lado, a movimentação aquática do povo é mais interessante visualmente do que a proposta pelo rival da DC. Na verdade, a abordagem dessa sociedade é bem mais crível. Os costumes, as tradições, as atividades do povo no dia a dia. Todo o conceito de existência dessa população é muito bem construído e crível, explorando elementos e animais marinhos como parte funcional dessa civilização. E por ser apenas a introdução desse núcleo, fica aqui uma expectativa colossal para o que poderá ser mostrado no futuro.
Outro ponto interessante é justamente a construção imagética do exército de Namor. Por ser um híbrido do povo atual com a vida ancestral, o líder mantém sua aparência humana (com orelhas pontudas e asinhas nos pés, é claro) o tempo todo, o que o diferencia de seus liderados, que ficam com a pele azulada quando estão fora d’água, o que acaba dando a eles um visual místico muito interessante, que brinca diretamente com outros mitos e lendas do mar, como as sereias. E suas armas e aparatos, como os respiradores, remontam a armas e vestimentas indígenas, dando uma caracterização incrível para esse povo, mesmo que esteja ali efetivamente para ocupar um papel de “capangas”.
O filme também introduz uma personagem com bastante potencial para o futuro do MCU e que já tem até série própria confirmada: Riri Williams, a Coração de Ferro (Dominique Thorne). Não vou entrar em detalhes, mas a menina está muito bem adaptada para esse universo e já chega na história como se fosse uma velha conhecida do público. Nessa proposta de Jovens Vingadores que a Marvel vem construindo nessa Fase Quatro, ela se encaixa perfeitamente.
Da mesma forma, o longa insere outros personagens que claramente estão ali para chamarem atenção para projetos futuros. Eles não incomodam e estão bem encaixados no roteiro, de modo que sua presença faça sentido.
E essas adições de última hora ajudam a compor o clima de aventura geopolítica que o filme propõe. A visão de Riri de Wakanda, por exemplo, traz um deslumbramento muito grande para o filme, que adota momentaneamente a visão de uma jovem “comum” àquele mundo quase mágico. Em comparação com o primeiro filme, as cenas de ação evoluíram bastante, fazendo melhor uso das habilidades especiais da Pantera Negra e das propriedades únicas que o vibranium e afins proporcionam a quem o estiver manipulando.
Porém, se há um ponto que não chega a ser incômodo, mas pode ser um problema para alguns é a longa duração do filme: cerca de 2h40. Só que, como Coogler tem tantas coisas para trabalhar, essas quase três horas acabam sendo bem preenchidas com conteúdo. Em momento algum fica aquela sensação de estarem enchendo linguiça. Mas, como estamos em uma fase na qual muitos desacostumaram a ver filmes nos cinemas, por conta do período de confinamento ocasionado pela pandemia, pode ser que isso pese para alguns.
Enfim, Pantera Negra: Wakanda Para Sempre é um filme tributo que se recusa a ser resumido apenas a uma homenagem. Ele abraça a aventura e a trama política para romper com conceitos estabelecidos no original e questionar as crenças dos próprios personagens. É uma sequência ousada que não tem medo de trilhar seu próprio caminho, levando a Shuri a uma zona cinzenta interessantíssima e pouco explorada do MCU, enquanto introduz um personagem fantástico, que encerra sua participação deixando aquele “gostinho de quero mais”. E por ser uma trama política, é muito difícil definir quem é o vilão – ou se há mesmo um vilão -, sendo que algumas das principais atitudes tomadas podem ser vistas apenas como visões políticas diferentes ou proteção de soberanias. É um dos filmes mais instigantes dessa Fase Quatro da Marvel, que chega ao fim com essa aventura divertida e madura.
Pantera Negra: Wakanda Para Sempre estreia nos cinemas nesta quinta-feira (10), mas já há sessões de pré-estreia disponíveis a partir desta quarta (9).