Felizmente nos últimos anos o audiovisual tem sido mais generoso e mais aberto para outras narrativas que não apenas aquelas centradas em um único modo de dizer e pensar as coisas. Felizmente também isso tem se refletido nas salas de cinema e no interesse do público que, gradativamente, vem se interessado cada vez mais, por exemplo, pela temática e pelas narrativas indígenas brasileiras, ao ponto de estas histórias estarem frequentando festivais e também o circuito regular de exibição. Não que antes não acontecesse, porém, é muito legal ver que isso está rolando com mais frequência nos últimos anos. E como parte das celebrações do Mês das Povos Indígenas, estreou essa semana em várias cidades do país o filme ‘Para’í’.
Pará (Samara Cristina Pará Mirim O. Martim) é uma garotinha da etnia Guarani que, junto com sua melhor amiga, vive a dupla vida entre a escola, com seus ensinamentos pelo modelo ocidental, e a vida na aldeia, dentro do território indígena Jaraguá, em São Paulo. Também dentro de casa ela vive uma cisão: por um lado, sua mãe é mais tradicional e segue os ritos de seu povo, por outro lado o pai, mais influenciado pela presença da igreja evangélica, rejeita as práticas ritualísticas da aldeia e de seu povo, ao ponto de não ver importância quando seu pai, pajé da aldeia, decide ir embora para uma nova aldeia, em outro terreno, onde a terra é boa para plantar. Quando, um dia, Pará encontra um milho colorido (para’í) perto de sua casa, o mundo de possibilidades da menina se abre infinitamente. Decidida a plantar o milho mágico e ter mais deles, Pará e sua melhor amiga estão dispostas a tudo, inclusive fugir de casa e enfrentar a selvática cidade grande que é São Paulo.
Em pouco menos de uma hora e meia de duração ‘Para’í’ transporta o espectador comum ao cotidiano da vida coletiva na aldeia Jaraguá, ressaltando como a educação e a criação coletiva são fundamentais para a formação de caráter nas crianças indígenas, ressaltando a interação de núcleos de mulheres mais velhas, que passam a cultura originária aos curumins, e também o núcleo dos homens mais velhos, em contraste entre a tradição e a influência da igreja e sua doutrina. Um dos melhores acertos do roteiro foi colocar não só o protagonismo, mas também o olhar da menina Pará diante desse mundo de possibilidades que se abre à sua frente, imprimindo a ingenuidade e o frescor infantil perante problemas tão complexos que nós, enquanto adultos, sabemos que os territórios indígenas enfrentam.
Com seu olhar profundo somatizado a perguntas singelas, a menina Pará é simplesmente um encanto na telona. O diretor Vinicius Toro acerta em gravar seu filme em língua Guarani e também em português, mostrando as dificuldades de ser bilíngue em um país que não reconhece as línguas originárias e impõe uma única língua desde a educação da primeira infância.
Gravado em 2018 e tendo sido engavetado por conta da pandemia, o filme estreia no momento certo, não só porque agora as pessoas já estão voltando ao cinema, mas porque, acima de tudo, o próprio público brasileiro está mais interessado em ver e saber mais sobre as culturas indígenas. Assim, ver ‘Para’í’ nos cinemas é não só uma oportunidade única, mas também um ótimo convite para mudar o olhar sobre a coexistência contemporânea nas comunidades indígenas.