A 78ª edição do Festival de Cannes foi inaugurada com um gesto ousado e simbólico: pela primeira vez na história do evento, a escolha do filme de abertura recaiu sobre uma debutante: Partir un jour, de Amélie Bonnin, estrelado por Juliette Armanet e Bastien Bouillon. A proposta parecia clara — celebrar a juventude e um certo espírito pop francês. No entanto, embora simpático em sua forma e intenção, o filme se revela frágil na execução, oferecendo uma experiência aquém da expectativa que essa cobiçada abertura costuma gerar.
De fato, Cannes tem um histórico de inícios mornos — basta lembrar do modorrento Jeanne du Barry, de Maïwenn, ou mesmo Segundo Ato, de Quentin Dupieux, que, embora tente divertir, pouco arrisca. Em 2022, ao menos Corta!, de Michel Hazanavicius, trouxe frescor e metalinguagem, além de uma mensagem de trabalho de equipe. Já Partir un jour é semelhante a muitas outras comédias românticas francesas, jamais vistas fora do país hexagonal. Seu principal mérito, portanto, seja o de conseguir chegar a um público global graças ao prestígio da Croisette — algo que dificilmente aconteceria fora desse contexto.
O filme aposta numa estrutura de comédia romântica enfeitada por números musicais baseados em hits francófonos dos anos 1990. A ideia, à primeira vista, é interessante: evocar uma nostalgia coletiva e transformar o reencontro de um casal em uma espécie de karaokê popular. O problema é que a execução raramente alcança esse potencial. Ouso dizer que Evidências do Amor (2023), com Fábio Porchat e Sandy, é mais engraçado e cativante ao público brasileiro, por exemplo. A sequência inicial, ao som de Alors on danse, de Stromae, se apresenta pálido para canção bastante conhecida e um convite pouco vibrante a vida de Cécile, uma chef conhecida pelo programa de TV Masterchef, que volta a sua cidade natal por conta da saúde fragilizada do seu pai.
Alguns números musicais arrancam sorrisos — como o simpático Ce soir-là dentro de uma boate —, mas outros beiram o constrangimento. A releitura de Paroles… Paroles (originalmente imortalizada por Dalida) é um dos momentos mais desequilibrados do filme, parecendo deslocada, pouco inspirada e excessivamente teatral. É nesse vai e vem entre o encantador e o incômodo que Partir un jour se desenrola, nunca conseguindo manter um ritmo consistente ou um tom que verdadeiramente nos prenda a atenção.
As dores, dúvidas e desejos dos seus personagens estão mais nos diálogos do que na experiência em tela, portanto falta uma fotografia adaptada e densidade dramática, tanto nas atuações quanto na direção sem estilo ou destaque. Embora Juliette Armanet e Bastien Bouillon se esforcem para emprestar carisma aos seus personagens, o amor do passado não se materializa aos olhos do público.
Além de uma mise en scène comedida, o roteiro se prende a fórmulas previsíveis, salvo por uma breve ruptura próxima ao desfecho. Nesse momento — o único em que a diretora se permite algum risco estético, numa cena etérea ambientada numa pista de patinação — o filme brinca com sobreposições visuais entre o passado e o presente, como se a memória irrompesse no agora. O ritmo se torna mais envolvente, a narrativa enfim sugere complexidade, mas esse sopro de frescor logo se dissipa. Voltamos aos eventos triviais e à estética domesticada, encerrando o filme num tom melancólico, mais pelo esgotamento do que pela emoção.
Um ponto que poderia ter sido ousado — a decisão da personagem principal de interromper uma gravidez por convicção pessoal — acaba sendo suavizado por um arco melodramático que reconduz tudo ao lugar-comum da redenção materna. O mesmo festival que recentemente acolheu o turbilhão musical de Emília Pérez (2024), agora se contenta com lufadas de tédio, embaladas por um melodrama preso às fórmulas da cultura pop francesa — ou, melhor dizendo, um “karaokê nacional” cuja voz dificilmente atravessará as fronteiras.
A música final, da boy band 2Be3, que dá nome ao filme, deve ter sido a balada sentimental da juventude de Amélie Bonnin,e fonte de inspiração desde o curta que lhe rendeu um César, mas ela ainda carece de maturação para tornar suas ideias compartilháveis e vivas. Basta compará-la à Lady Bird (2017), de Greta Gerwig — outro primeiro filme quase autobiográfico, que fala da juventude da cineasta em Sacramento. Ali, Gerwig nos convida a uma complexa relação de amor e repulsa com nossas raízes. Aqui, nem sequer sabemos o nome da cidade natal da protagonista. Se Partir un jour é um convite, ele nos deixa sem destino.