Estamos em pleno 2022, mas, quanto mais cavamos na nossa história do país, mais descobrimos que muitos temas que se entendia como exterminado por aqui, pertencente ao passado, permanece atual, acontecendo em plena contemporaneidade, a olhos vistos, a luz do dia – mas ninguém quer ver. Isso acontece, por exemplo, com a escravidão, datada como encerrada em território brasileiro em 13 de maio de 1888, mas que continua nos dias de hoje, em outros formatos. Este é o tema de ‘Pureza’, fortíssimo filme brasileiro que chega no próximo dia 28 de abril aos cinemas.
Pureza (Dira Paes) é mãe solo que cuida do jovem filho Abel (Matheus Abreu) no interior do Pará. Para sobreviver, os dois trabalham confeccionando tijolos tipo adobinho, vendendo o milhar a baixo custo para ricos donos de empresas da região. Cansado de tanta exploração, Abel decide deixar essa vida e ir tentar a sorte no garimpo, de onde ouviu falar muita prosperidade. Porém, mais de mês se passa e Pureza fica sem ouvir notícias do filho. Angustiada, decide ir atrás do rapaz, imaginando que algo de ruim poderia ter lhe acontecido, sem imaginar o sombrio paradeiro do jovem.
Para a triste surpresa do espectador, ‘Pureza’ é um filme baseado numa história real, cujas evidências são sinalizadas no terceiro arco do longa de Renato Barbieri. A história se passa nos anos 1990, mas, salvo a ausência de algumas tecnologias, é totalmente atual – tanto que ainda ocorre hoje no interior do território brasileiro. Mas, como muitos desses relatos acabam não ganhando o conhecimento público – seja por desinteresse das autoridades, seja por serem tão localizados, que a mídia não divulga a nível internacional – a sociedade das grandes metrópoles acaba ignorando a ocorrência do trabalho escravo em pleno 2022, vivendo numa grande ilusão.
O roteiro de Renato Barbieri com Marcus Ligocki é bem-feito, especialmente nos primeiros dois arcos, mostrando como a protagonista, movida pelo seu amor incondicional ao filho, faz literalmente de um tudo para conseguir pistas do seu paradeiro. Sem recair no drama que abusa de situações de violência gráfica, o roteiro opta por deixar pistas subliminares do que pode ter acontecido, relegando à inteligência do espectador entender sozinho certas cenas – como quando Pureza, para conseguir uma carona, pinta as unhas de vermelho e se arruma, deslumbrando a Narciso (Flávio Bauraqui).
A intensidade dramatúrgica de ‘Pureza’ é conduzida por Dira Paes com extrema competência pois a atriz lapida uma personagem forte e introspectiva, lutadora e temerosa e que, numa situação como a da exploração da mão de obra em plantações do interior do país onde não há fiscalização, Pureza se transforma na mãe de todos eles, tal como a ‘Branca de Neve’ e os sete anões sem a fantasiosa áurea do conto de fadas. Qualquer semelhança não é mera coincidência, e sim atualização do tema.
Tão importante quanto intenso, ‘Pureza’ é um filme-potência que busca não deixar no escuro a absurda permanência das múltiplas facetas da escravidão contemporânea na Região Amazônica, reassumindo a responsabilidade educacional do cinema de dar visibilidade à trajetória de uma importante mulher cujo heroísmo já deveria ser conhecida pela população brasileira, e que felizmente chega agora ao grande público através do audiovisual.