Filme visto no Festival do Rio 2022.
Muitas culturas buscam o encerramento – uma cerimônia, um gesto, um acontecimento que possa, de alguma forma, marcar e dar fim a um período, e, consequentemente, dar início a uma nova fase. O ser humano precisa desses rituais para conseguir seguir em frente, emocional e psicologicamente, sendo este um recurso bastante utilizado, inclusive, em tratamentos psiquiátricos e terapias para superação de traumas. Entretanto, é difícil assumir a necessidade de se precisar desse encerramento, pois nem sempre é fácil falar disso em voz alta. Essa é o tema de ‘Raymond e Ray’, nova comédia dramática que teve sua estreia antecipada durante o Festival do Rio esse ano e que chegou recentemente aos assinantes da AppleTV+.
Raymond (Ewan McGregor) é um homem separado da esposa e cujo filho está longe, no exército estadunidense. Ele recebe a notícia de que seu pai, Harris (Tom Bower) acaba de falecer, e, como seu último desejo, gostaria que seus filhos atendessem ao seu funeral e o enterrassem pessoalmente, cavando sua cova. Por isso Raymond vai até a casa de seu meio-irmão Ray (Ethan Hawke), um ex-músico meio falido a quem não vê há muito tempo e com quem passou parte de sua infância quando o pai violento não estava batendo neles. Então, Raymond e Ray partem de carro numa viagem amarga até a cidade onde o pai morava para enterrá-lo, mas, uma vez lá, descobrirão que o homem a quem costumavam odiar era uma pessoa bem diferente diante dos olhos dos moradores locais. E, nesse dia, muitos segredos serão revelados, ao mesmo tempo em que, mesmo morto, o pai continua conseguindo desestruturá-los emocionalmente.
Em uma hora e quarenta e cinco de duração, ‘Raymond e Ray’ busca fazer um retrato sobre as frustrações humanas diante da vida e da morte – e, especialmente, as frustrações diante do mau caratismo do ser humano, afinal nem todo mundo é boa gente. Escrito e dirigido por Rodrigo García, o roteiro parte da morte para inserir uma série de elementos que comprovam que ninguém conhece ninguém a fundo de verdade, e nem mesmo a morte é capaz de suavizar os mais profundos rancores. Nesse viés, mesmo as situações cerimoniais, vistas com bastante deferência socialmente, são incontroláveis quando os verdadeiros sentimentos vêm à tona, dando liberdade à obrigatoriedade do luto às pessoas que decidem não perdoar.
Com maestria e acidez, ‘Raymond e Ray’ retira as máscaras convencionais às quais todos confortavelmente adequam-se para conviver com as pessoas – as boas e as ruins. Isso inclui as novas companhias que ganhamos no caminho e velhos conhecidos que, de uma hora para outra, podem se transformar em desconhecidos. Produzido por ninguém menos que o oscarizado Alfonso Cuarón e numa vibe meio Irmãos Coen, Rodrigo García explora o talento de Ethan Hawke, como um galanteador decadente, e de Ewan McGregor, obrigado a esconder suas emoções até o quarto final do longa, para dar rosto ao fracasso humano de tentar só ver o lado bom das coisas o tempo todo, mesmo quando referido às pessoas odiáveis.
Encabeçado por dois grandes talentos hollywoodianos e com uma história ácida-provocativa em um humor dramático que conduz os personagens ao limite das performances cotidianas em prol da sobrevivência, ‘Raymond e Ray’ é um filme único, hilário a seu modo, que tensiona os nervos e flerta com o absurdo até sua catarse final. Tal como a vida, incontrolável e imprevisível.