Rogéria era um furacão. Não era preciso conhecê-la pessoalmente para saber que aquela era uma mulher era com objetivo, e que não mediria esforços para conseguir o que queria. Era doce e exigente, delicada e firme, afrontosa e amorosa, homem e mulher. Rogéria era Astolfo e Astolfo era Rogéria, nunca houve separação entre essas duas personalidades que habitavam o mesmo corpo, e hoje, dois anos após a sua morte, esta icônica artista brasileira ganha um documentário à altura de seu legado.
Em ‘Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto’ o público se delicia com os causos contados pela própria homenageada e por convidados que conviveram intimamente com ela, dentre os quais Betty Farias, Nanny People, Aguinaldo Silva, Bibi Ferreira e Jô Soares. Os relatos, sem exceção, apontam o quanto a sociedade brasileira jamais esteve preparada para lidar com uma pessoa com tamanha vitalidade, tão bem resolvida consigo mesma. Se houvesse qualquer fraquejo, provavelmente a mídia se aproveitaria para destruir esta persona, porém, em seus setenta e quatro anos de vida, a impressão que o espectador tem é que Rogéria nunca vacilou de ser quem queria ser.
O documentário já começa fazendo a gente rir, elevando o nível da expectativa. De imediato, somos presenteados por confissões de como Rogéria era ótima jogando futebol e ficava na posição de goleiro; só que ela gostava de jogar de biquíni, o que fazia com que eventualmente o seu “pinto” escapulisse para fora do tecido e, enquanto as pessoas ficavam chocadas com aquilo, Rogéria simplesmente agia com naturalidade – afinal, era só um pênis. Ela era muito segura do próprio corpo e, tal como dito por ela no documentário ‘Divinas Divas’ (que, aliás, dialoga muito com este aqui, então, fica a dica para complementar o panorama das famosas travestis brasileiras), Rogéria nunca quis operar o sexo porque era também Astolfo. Afinal, Rogéria gostava de parecer mulher, não de ser uma, e que ela “usava saia porque era muito homem”.
Em outro momento assistimos a uma das últimas entrevistas da homenageada, no então Programa do Jô, em que, contando uma de suas muitas histórias, Rogéria abre os braços e seu seio escapole para fora da blusa, ficando à mostra. Enquanto nós, no cinema, sentimos que toda a plateia fica em choque nesse momento, vemos a Rogéria ali na telona sorrir e cobrir o seio com tranquilidade, quase como se estivesse provocando a gente a pensar “gente, mas é só um seio, vocês nunca viram um?”.
O trabalho do diretor Pedro Gui (gente! É o primeiro trabalho dele, guardem esse nome!) é de extrema sensibilidade em conduzir a montagem de depoimentos de personalidades, familiares e da própria homenageada intercalando com arquivos de programas de televisão, fotografias, jornais e, surpreendentemente, até mesmo cenas de uma peça de teatro, que ajudam na narração do fio condutor do documentário. Todos esses painéis se intercalam com inacreditável sintonia, de modo que o espectador não sente a transição de um momento para o outro. Isso tudo também é mérito do cuidadoso roteiro de Dostoiewski Champangnatte, que colocou sentimento em toda a sua construção, visando emocionar o espectador em literalmente todas as cenas do longa-metragem.
A curadoria de Daniel Lopes com a trilha sonora é de extremo zelo pelo gosto musical da homenageada, então o público pode ter certeza de que ouvirá belíssimas canções que, na interpretação de Rogéria, se tornaram inesquecíveis. Afinal, como ela mesma dizia, “talento não tem sexo”.
‘Rogéria: Senhor Astolfo Barroso Pinto’ é um documentário impecável – e olhem aqui a ironia de usarmos esta palavra para descrever Rogéria. É desses filmes que você simplesmente não acredita quando acaba e que presta uma justíssima homenagem à “travesti da família brasileira”, que era, acima de tudo, uma artista, uma das melhores que o Brasil já teve, e que permanece viva no imaginário popular.