Crítica livre de spoilers.
David Benioff e D.B. Weiss ganharam fama em escala planetária ao emergirem como co-criadores de uma das melhores séries de todos os tempos – ‘Game of Thrones’, adaptação dos romances assinados por George R.R. Martin. Levando inúmeros prêmios para casa, a obra da dupla caiu no gosto do público e da crítica, consagrando-se em sua impecabilidade criativa, mesmo deslizando em vários momentos ao chegar na oitava e última temporada (que não conseguiu agradar nem mesmo aos fãs mais inveterados da produção). Agora, cinco anos depois do fim da série, eles estão de volta com a ambiciosa releitura sci-fi de ‘O Problema dos 3 Corpos’, que chegou no último dia 21 de março ao catálogo da Netflix.
Baseado no romance homônimo de Liu Cixin, a trama aglutina uma quantidade considerável de personagens e de tramas em uma viagem pelo tempo e pelo espaço – mas não da forma como imaginamos. Temos, de um lado, uma astrofísica chamada Ye Wenjie (Rosalind Chao) enfrenta duros momentos durante a Revolução Cultural Chinesa que bane, por completo, as influências neoimperialistas do Ocidente do país e que massacra todos aqueles que apoiam os Estados Unidos e seus aliados. Após presenciar a morte do pai, ela é forçada a se submeter ao novo governo até ser recrutada por uma base secreta que desenvolve um experimento secreto – e que se torna palco para que ela tome uma decisão com repercussões catastróficas que ditarão o futuro da humanidade.
De outro lado, observamos pacientes e impotentes os corolários das decisões feitas por Ye em um passado não muito distante – e que envolvem uma série de suicídios inesperados de cientistas de alta patente, acontecimentos estranhos ao redor do universo, aparições quase sobrenaturais e uma espécie de “jogo” de realidade virtual que premedita a nossa história. E tudo isso contando com ótimas performances que incluem Benedict Wong como Da Shi, Eiza González como Auggie Salazar, Jovan Adepo como Saul Durand e vários outros que se entregam de corpo e alma a personagens complexos e muito bem-vindos a um cosmos intrincado, complexo e que nos mantém envolvidos – ao menos até uma conclusão um tanto quanto precipitada e frustrante.
É notável como não podemos deixar de associar os nomes de Benioff e Weiss a uma faca de dois gumes. Afinal, os showrunners sabem como conduzir uma boa história, mas parecem se esquecer de elaborar com cautela a que ponto determinado enredo deve chegar. Logo de cara, os criadores demonstram um apreço por um escopo épico e dramático, não pensando duas vezes antes de construir cenários gigantescos e que partem de um princípio determinista que coloca a pequenez do homem em contraste com a imensidão do cosmos e o que se esconde nas estrelas – uma vertente que vemos em constância assustadora na indústria do entretenimento.
A originalidade emerge com a construção dos protagonistas e coadjuvantes, que não estão alheios à atmosfera que os rodeia, mas fazem parte de uma intrínseca relação entre passado, presente e futuro. Auggie é atormentada pela visão de um cronômetro em contagem regressiva que apenas desaparece quando, em uma decisão inesperada, decide acabar com o experimento que está supervisionando em seu trabalho – temendo o que acontecerá quando o relógio chegar a zero; a brilhante Jin Cheng (Jess Hong), que coloca as mãos em um objeto de realidade virtual cuja tecnologia é simplesmente inexplicável e não tem quaisquer precedentes entre as criações humanas – colocando-a em xeque com os próprios valores e de que forma as decisões que toma são reflexo de algo muito maior e que parece impalpável (ao menos no começo); e Ye (no presente, vivida por Zine Tseng) sabe o que houve nas décadas passadas e age como se estivesse de mãos atadas para fazer qualquer coisa para ajudar – seja lá o que esteja acontecendo.
Um dos principais obstáculos enfrentados pela primeira temporada é a quantidade exorbitante e exaustiva de construções sci-fi que se baseia em termos técnicos e uma falta significativa de explicações para que o público entenda – algo que já tínhamos visto anteriormente com ‘Dark’, cuja anfigúrica cronologia tornou o trabalho dos espectadores muito mais difícil. Todavia, diferente de ‘O Problema dos 3 Corpos’, ‘Dark’ fornece um certo didatismo que podemos acompanhar, ao passo que aqui, levamos um tempo até compreender exatamente o que Weiss e Benioff desejam (um tempo demasiado longo e que só se concretiza a partir do terceiro episódio, não garantindo, de fato, a aderência dos espectadores ao épico metafísico que criaram).
A nova série da Netflix consegue, em boa parte, entregar o que promete – com exceção de certos momentos que tentam dar um passo maior que a perna e cedem a convencionalismos do gênero e a ambiguidades contínuas. Todavia, é bem perceptível as boas intenções da equipe criativa e atuações de tirar o fôlego são aspectos que nos convencem a comprar essa jornada e a assistir a temporada do começo ao fim.