quarta-feira , 20 novembro , 2024

Crítica | ‘Sorria’ explora o trauma com uma ambiciosa e dissonante narrativa

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Já faz algum tempo que filmes de terror vem apostando fichas em um escopo diferente do que estávamos acostumados: em vez de mergulharem nas conhecidas tramas sobre possessões demoníacas, criaturas infernais e serial killers, uma onda de produções focando essencialmente na psique humana vem tomando conta do cenário mainstream hollywoodiano – cujo enfoque é a multiplicidade temática do trauma e de suas consequências. Ainda em 2002, tivemos o ótimo remake em língua inglesa e ‘O Chamado’, uma narrativa que utiliza experiências traumáticas como mote; mais recentemente, o subestimado ‘Quando as Luzes se Apagam’ aliou esse mesmo enredo à depressão e construiu uma potente história que merecia mais reconhecimento do que tem.

Em 2022, está na hora de retornar a esse escopo com o ambicioso Sorria. Baseado no elogiado e premiado curta-metragem ‘Laura Hasn’t Slept’, que ganhou atenção da mídia e do público ao estrear no Festival South by Southwest em 2020, a trama gira em torno de uma psiquiatra chamada Rose Cotter (Sosie Bacon), que negligencia a si mesma para ajudar aos outros. Rose passou por um evento extremamente traumático quando mais jovem, encontrando a mãe morte após uma overdose, e, ainda que carregue as marcas de um passado sombrio, tenta fazer o máximo para auxiliar aqueles que mais precisam; entretanto, as coisas mudam quando uma jovem chamada Laura Weaver (Caitlin Stasey) aparece em seu consultório e alega estar sendo perseguida por uma força demoníaca que se disfarça com uma máscara terrível e que prenuncia sua morte.



É claro que, seguindo o “manual” do gênero, Rose não acredita que uma entidade sobrenatural a esteja caçando, mas sabe que Laura acredita e não consegue escapar de alguma coisa intangível que deseja machucá-la. Mas as coisas não saem como o planejado e quando Laura corta a própria garganta, Rose é arremessada de volta a tudo aquilo contra o que lutava, sendo engolfada em um vórtice de trauma que passa a alimentar seus sonhos e a reiterar que o mundo é um lugar muito mais complexo do que parece. E, em se tratando de um longa-metragem de terror, é aí que as coisas complicam e Rose se torna alvo da mesma força que acossava a ex-paciente.

O maior mérito da produção é, sem sombra de dúvida, a assombrosa atmosfera arquitetada pelo diretor Parker Finn. Responsável pelo curta original, Finn toma as rédeas criativas ao também ficar a encargo do roteiro, tendo liberdade o suficiente para trabalhar como quer e destrinchar uma breve narrativa em uma espécie de análise antropológica que nos deixa à beira de um ataque de nervos quase o tempo inteiro. Os elementos estéticos são arquitetados com maestria invejável que prestam homenagem a mestres do horror: temos a brincadeira entre supressão e dilatação de tempo com planos-sequência à la James Wan; o jogo de luz e sombra que nos remete, em certa instância, aos clássicos de Alfred Hitchcock; e uma exaltação hiperbólica da angústia e da total falta de prospecto que pega elementos emprestados de Dario Argento e Mike Flanagan.

Bacon faz um ótimo trabalho como a protagonista, utilizando um drama e um pavor necessários para fornecer a profundidade necessária à personagem – ainda que isso não seja tão imprescindível, considerando as mensagens que o filme fornece. A atriz investe esforços notáveis para não apenas transformá-la em mais uma persona de uma obra qualquer, mas alguém que está em constante alerta sobre como se comporta perto dos outros, culpando-se pela morte da mãe e pelo desgastado relacionamento de que nutre com a irmã, o cunhado e o próprio noivo. Ora, ela inclusive se sente traída pela terapeuta que a atendia, Madeline (Robin Weigert), como se fosse um receptáculo de toxicidade que reafirma, de certa maneira, ter sido “escolhida” pela entidade maligna.

É muito claro perceber como Finn conhece o material que se estende à sua frente e, na maior parte, demonstra como não quer reinventar a roda. Temos a impressão da forma como enxerga o mundo e as forças que se escondem do olho humano, mas temos também uma mistura de convencionalismos e unicidades que são bastante aprazíveis, apesar de não funcionarem por completo. Algumas das sequências que clamariam por um jump scare são retorcidas e remodeladas em uma durabilidade sinestésica da qual não há escapatória (e aqui faço menção à ótima cena em que Rose está sozinha em casa e fala ao telefone, ou à cena em que Rose presencia o psicótico ataque de Laura); em contraposição, há sequências que poderiam ser melhor trabalhadas, visto que parecem construídas às pressas e entram em desacordo com o que Finn quer entregar.

Sosie Bacon stars in Paramount Pictures Presents in Association with Paramount Players A Temple Hill Production “SMILE.”

O escopo da obra é aprazível, mas não podemos deixar de mencionar a abrupta e bizarra conclusão que não condiz com a mitologia arquitetada até então; como percebemos, o cineasta aposta em um pessimismo cênico e uma compreensão cruel de que é impossível fugir do trauma (um deliberado discurso que condiz com a estrutura do filme, mas que pode causar certo desconforto em alguns espectadores), mas tanto os risíveis efeitos especiais quanto os diálogos truncados impedem que a resolução seja aproveita ao máximo.

Sorria é um surpreendente terror psicológico que vale mais a pena pela jornada do que pelo destino. Finn faz uma aplaudível estreia no circuito dos longas-metragens e consegue reunir talentos excepcionais para uma interessante e ambiciosa aventura que, mesmo não sendo perfeita, é uma ótima pedida para um final de semana.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em 2022, está na hora de retornar a esse escopo com o ambicioso Sorria. Baseado no elogiado e premiado curta-metragem ‘Laura Hasn’t Slept’, que ganhou atenção da mídia e do público ao estrear no Festival South by Southwest em 2020, a trama gira em torno de uma psiquiatra chamada Rose Cotter (Sosie Bacon), que negligencia a si mesma para ajudar aos outros. Rose passou por um evento extremamente traumático quando mais jovem, encontrando a mãe morte após uma overdose, e, ainda que carregue as marcas de um passado sombrio, tenta fazer o máximo para auxiliar aqueles que mais precisam; entretanto, as coisas mudam quando uma jovem chamada Laura Weaver (Caitlin Stasey) aparece em seu consultório e alega estar sendo perseguida por uma força demoníaca que se disfarça com uma máscara terrível e que prenuncia sua morte.

É claro que, seguindo o “manual” do gênero, Rose não acredita que uma entidade sobrenatural a esteja caçando, mas sabe que Laura acredita e não consegue escapar de alguma coisa intangível que deseja machucá-la. Mas as coisas não saem como o planejado e quando Laura corta a própria garganta, Rose é arremessada de volta a tudo aquilo contra o que lutava, sendo engolfada em um vórtice de trauma que passa a alimentar seus sonhos e a reiterar que o mundo é um lugar muito mais complexo do que parece. E, em se tratando de um longa-metragem de terror, é aí que as coisas complicam e Rose se torna alvo da mesma força que acossava a ex-paciente.

O maior mérito da produção é, sem sombra de dúvida, a assombrosa atmosfera arquitetada pelo diretor Parker Finn. Responsável pelo curta original, Finn toma as rédeas criativas ao também ficar a encargo do roteiro, tendo liberdade o suficiente para trabalhar como quer e destrinchar uma breve narrativa em uma espécie de análise antropológica que nos deixa à beira de um ataque de nervos quase o tempo inteiro. Os elementos estéticos são arquitetados com maestria invejável que prestam homenagem a mestres do horror: temos a brincadeira entre supressão e dilatação de tempo com planos-sequência à la James Wan; o jogo de luz e sombra que nos remete, em certa instância, aos clássicos de Alfred Hitchcock; e uma exaltação hiperbólica da angústia e da total falta de prospecto que pega elementos emprestados de Dario Argento e Mike Flanagan.

Bacon faz um ótimo trabalho como a protagonista, utilizando um drama e um pavor necessários para fornecer a profundidade necessária à personagem – ainda que isso não seja tão imprescindível, considerando as mensagens que o filme fornece. A atriz investe esforços notáveis para não apenas transformá-la em mais uma persona de uma obra qualquer, mas alguém que está em constante alerta sobre como se comporta perto dos outros, culpando-se pela morte da mãe e pelo desgastado relacionamento de que nutre com a irmã, o cunhado e o próprio noivo. Ora, ela inclusive se sente traída pela terapeuta que a atendia, Madeline (Robin Weigert), como se fosse um receptáculo de toxicidade que reafirma, de certa maneira, ter sido “escolhida” pela entidade maligna.

É muito claro perceber como Finn conhece o material que se estende à sua frente e, na maior parte, demonstra como não quer reinventar a roda. Temos a impressão da forma como enxerga o mundo e as forças que se escondem do olho humano, mas temos também uma mistura de convencionalismos e unicidades que são bastante aprazíveis, apesar de não funcionarem por completo. Algumas das sequências que clamariam por um jump scare são retorcidas e remodeladas em uma durabilidade sinestésica da qual não há escapatória (e aqui faço menção à ótima cena em que Rose está sozinha em casa e fala ao telefone, ou à cena em que Rose presencia o psicótico ataque de Laura); em contraposição, há sequências que poderiam ser melhor trabalhadas, visto que parecem construídas às pressas e entram em desacordo com o que Finn quer entregar.

Sosie Bacon stars in Paramount Pictures Presents in Association with Paramount Players A Temple Hill Production “SMILE.”

O escopo da obra é aprazível, mas não podemos deixar de mencionar a abrupta e bizarra conclusão que não condiz com a mitologia arquitetada até então; como percebemos, o cineasta aposta em um pessimismo cênico e uma compreensão cruel de que é impossível fugir do trauma (um deliberado discurso que condiz com a estrutura do filme, mas que pode causar certo desconforto em alguns espectadores), mas tanto os risíveis efeitos especiais quanto os diálogos truncados impedem que a resolução seja aproveita ao máximo.

Sorria é um surpreendente terror psicológico que vale mais a pena pela jornada do que pelo destino. Finn faz uma aplaudível estreia no circuito dos longas-metragens e consegue reunir talentos excepcionais para uma interessante e ambiciosa aventura que, mesmo não sendo perfeita, é uma ótima pedida para um final de semana.

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