St. Vincent é uma das figuras mais interessantes da indústria do entretenimento e, pouco depois de sua estreia oficial no final dos anos 2010, ascendeu a uma fama espetacular e conquistou o coração da crítica e do público por suas construções originais que remam, até hoje, na maré do mainstream. Tendo conquistado uma estatueta do Grammy pela faixa-titular do espetacular ‘MASSEDUCTION’, a cantora e compositora estadunidense já se aliou a alguns dos nomes mais importantes do cenário fonográfico contemporâneo, como John Congleton e, recentemente, com o conhecido Jack Antonoff. Em 2021, a artista retomou colaboração com Antonoff para o antecipadíssimo álbum ‘Daddy’s Home’, uma homenagem biográfica e pungente sobre a prisão do pai, cujo encarceramento se deu em virtude de um golpe financeiro de mais de 40 milhões de dólares.
E, enquanto os últimos anos vinham sofrendo uma influência inenarrável das incursões musicais do disco e do house, próprias das décadas finais do século passado, St. Vincent, alter-ego de Annie Clark, não deixaria isso batido – mas esperaria o momento certo para esperar a onda nostálgica se acalmar e presentear seus fãs com uma versão própria e bastante renovadora quando em comparação com iterações similares. Abraçando os anos 1970 e, dessa forma, marcando um certo dialogismo com investidas anteriores, a performer resolveu explorar o funk e o soul que dominaram a atmosfera dos Estados Unidos, principalmente de Nova York, fazendo menções para o rock sessentista e deixando explícito quais foram suas influências majoritárias para o que apenas podemos chamar de um dos grandes álbuns do ano.
É complicado restringir ‘Daddy’s Home’ em estilos demarcados pela conhecida cronologia separatista da música – ainda mais quando nos deparamos com o anacronismo proposital e vibrante de “Pay Your Way In Pain”, densamente influenciada por Prince e por David Bowie. Aqui, o piano, os sintetizadores, as guitarras e o baixo se fundem em um experimentalismo gritante cuja narrativa cármica é mascarada pelas distorções vocais e por uma crítica ao tradicionalismo exagerado da sociedade (“fui ao parque olhar as crianças, as mães viram meus saltos e disseram que não era bem-vinda”). A mesma afeição pelo desconforto aparece no minimalismo pop-funk de “Down”, que resgata os elementos até mesmo do new wave de Seal (proeminente nos anos 1990). Nessa faixa, a rendição sensual é apenas um artifício mascarado para as reais intenções da cantora: uma vendeta pessoal contra aqueles que lhe fizeram mal.
St. Vincent faz questão de mencionar os trágicos acontecimentos que decaíram sobre a família com a track titular, especificamente. Logo nos dois primeiros versos, o ciclo biográfico dá o pontapé inicial com a dolorosa “eu dei autógrafos na sala de espera, esperando por você na última vez, detento 502”, recordando-se das vezes em que visitou o pai na cadeira. Entretanto, apesar da clareza lírica, é toda a composição arquitetada pelas hábeis mãos de Antonoff que nos leva em uma viagem bastante sinestésica, movida pelo capricho elegante dos sintetizadores e de delineações que não se importam em seguir as fórmulas, e sim em criar um universo próprio – trazendo inclusive a presença clássica da bateria e dos saxofones.
Diferente dos álbuns anteriores, a artista não tem preocupação em realizar movimentos ascendentes e descendentes – pelo contrário: ela constrói as músicas a seu bel-prazer, apenas recobrando o que de mais íntimo tem a oferecer. A perspectiva melódica, quase narcótica, toma forma ainda mais concisa nas semi-baladas como “The Melting of The Sun”, auxiliada por uma espécie de coro gospel e por referências à banda Eagles, por exemplo, ou então às reminiscências de Kate Bush com “…At The Holiday Party”, um dos vários pontos altos do compilado. “Candy Darling”, encerrando essa estupenda jornada, se volta para a frescor saudosista de Lana Del Rey e de sua magnum opus ‘Norman Fucking Rockwell!’, imprimindo uma identidade única que se une com o dissonante “Humming – Interlude 3”.
Mais do que nunca, St. Vincent demonstra que o passado tem lugar marcante em sua vida – sutilmente aludindo aos estilos que o próprio pai lhe apresentou quando criança, como revelou em diversas entrevistas promovendo a obra. “Down And Out Downtown” é uma elegia de empoderamento, um hino de independência e uma viagem tétrica, em que ela “estava voando pelo Empire State, então você me beijou e eu caí de novo”. Em “Laughing Man”, ela mostra uma versatilidade apaixonante e aplaudível que se alastra tanto para o ritmo frasal do blues quanto para um enredo à la John Cassavetes (que é inclusive reconhecido em um dos versos). “Somebody Like Me”, como a própria performer já explicou, é um cândido e íntimo retrato sobre a mútua ilusão do amor, perpassando pelos vários estágios de um relacionamento e pela construção de uma compreensão recíproca e profunda.
‘Daddy’s Home’ não é apenas um dos melhores álbuns de St. Vincent, como também um dos grandes lançamentos do ano. Com uma produção impecável e um apreço que tangencia o literário, ela cria histórias de amor, vingança, respeito e saudade através de uma complexa melancolia e uma paixão que a refirma como um dos maiores nomes do século.
Nota por faixa:
1. Pay Your Way In Pain – 5/5
2. Down And Out Downtown – 5/5
3. Daddy’s Home – 5/5
4. Live In the Dream – 4/5
5. The Melting of the Sun – 5/5
6. Humming – Interlude 1 – 5/5
7. The Laughing Man – 4,5/5
8. Down – 5/5
9. Humming – Interlude 2 – 4/5
10. Somebody Like Me – 5/5
11. My Baby Wants a Baby – 4/5
12. …At The Holiday Party – 5/5
13. Candy Darling – 5/5
14. Humming – Interlude 3 – 5/5