Raízes, tradições, vínculos. Um povo é feito de suas origens, sejam elas territoriais, sociais ou culturais. Como o pilar de sustentação, elas identificam os traços de homens e mulheres, refletem em suas personalidades, impactam na sua percepção de mundo. Em uma América construída por negros, ignorados sócio politicamente por sua cor, a raça é um apego à descendência, arraigado naquilo que não se pode tirar. The Last Black Man in San Francisco vai nas profundezas mais densas da essência da humanidade, tratando a rejeição de um povo e sua história por meio da inocência de um jovem que sonha em recuperar o lar que é sua maior lembrança de um tempo que não existe mais em sua família.
Joe Talbot não escreve e dirige como um forasteiro. Quinta geração de sua família nascido em São Francisco, ele sabe o peso do lar que registra sua origem na carteira de identidade. Assinando a narrativa com seu amigo de infância e protagonista do longa, Jimmie Fails, The Last Black Man conta a história de um jovem – obviamente negro – que passa os seus dias sonhando em retomar de volta a majestosa casa vitoriana construída por seu avô. Ali, suas melhores memórias foram escritas. Ali habita seu maior vínculo familiar, inexistente na relação com seus complexos pais. Todos os dias ele presta uma singela visita à residência, ajustando as falhas estruturais evidentes como quem cuida de um filho mimado por tanto amor, sonhando com o dia em que ele, pobre e negro, retomará o lar da região mais valorizada da cidade, uma vez tomada por negros, hoje cercada por brancos de classe média-alta.
Pela percepção apaixonada inveterada de Jimmy, conhecemos a trágica trajetória de um povo que firmou raízes em uma valiosa região de São Francisco, antes do seu glamour. Gradativamente enxotados dos lares que construíram – talvez parte disso pela gentrificação da área à época -, eles foram jogados para as extremidades, ignorados como um passado que a cidade insiste em negar. Agora alocados à margem dos centros urbanos locais, as comunidades de afro-americanos perecem com a negligência social, estrutural e econômica. Isolados da cidade que ajudaram a construir, vivem das lembranças daquele tempo próspero. Vivem em tempos de liberdade de expressão, mas ainda parecem frutos da Lei de Jim Crow.
Com maestria, o roteiro é de uma sensibilidade chocante. Com diálogos profundos e construções conceituais que entregam cenas que são um extrato das raízes do povo negro norte-americano, The Last Black Main in San Francisco é uma história contrastante de esperança de um jovem sonhador, que vive em negação com a real situação de sua comunidade. Como um homem que não vê cor em seus sonhos e em seu estilo despojado, marcado por um skate que o leva aonde precisa, ele é também um extrato de como todos deveríamos ser: diferentes, porém iguais. Sonhando por todos, ele tenta ser o sopro de mudança que vai resgatar os restos da cultura afrodescendente que habitava na região daquela majestosa casa. No entanto, é visto pelos seus pares – seus brancos vizinhos temporários – como um pária, alguém que não pertence ali.
E como é profunda essa perspectiva de The Last Black Man in San Francisco. Dividindo a tela entre os melhores amigos Jimmy e Montgomery (Jonathan Majors), a narrativa ainda nos apresenta esse personagem peculiar, um dramaturgo em potencial, que traja ternos largos e camisas bem alinhadas. Tentando criar sua própria identidade, ele foge dos estereótipos de jovens negros, à medida que vez outra parece querer se encaixar no modelo aceito pelos brancos. Ou talvez ele seja apenas um homem tentando ser quem deseja ser, sem estar associado a qualquer maneirismo de ambas as raças. Algo que, aparentemente, é tão difícil na América de 2019, como era na América de 1965.
Com diálogos e monólogos extasiantes, que emocionam a cada palavra dita, o drama ainda enche nossos olhos como um estética viciante, hipnotizante. Capturando a luz natural com leveza e intensidade, somos impactados pela composição feita entre a iluminação e as atuações, que são íntimas e realistas. Entregando tudo que possuem em tela, Fails e Majors beiram a perfeição diante da audiência, em uma sincronia, cumplicidade e dinâmica relacional surpreendente. Diante do que vemos, somos tocados pela mais profunda gratidão de poder estar ali, vivendo aquele instante cinematográfico tão poderoso.
Com um design de produção e fotografia belíssimos e um espetáculo de bandeja de atuação de Danny Glover, The Last Black Man in San Francisco é, sem exageros, um dos melhores filmes feitos na história recente da indústria cinematográfica. Honesto, genuíno e apaixonante, a produção é uma obra-prima sobre origens e desperta uma reflexão profunda sobre o resgate das raízes de um povo que construiu sua nação, mas até hoje é visto como um hiato ignorado da história mundial. Com autêntico potencial para o Oscar 2020, o drama é um conto que transcende a cor da pele, fazendo dela sua bússola para uma das jornadas mais irresistíveis do cinema.