domingo , 22 dezembro , 2024

Crítica | ‘The Underground Railroad’ é um implacável e árduo retrato da escravidão nos EUA

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Barry Jenkins ganhou proeminência no cenário audiovisual contemporâneo em meados da década passada, quando trouxe às telonas a belíssima adaptação de Moonlight: Sob a Luz do Luar, filme ganhador de três estatuetas do Oscar. Para além da competente produção, Jenkins ficou a encargo tanto da direção quanto do roteiro para colocar em voga diversos temas de discussão de extrema importância, incluindo orientação sexual, homofobia, racismo e a desigualdade social – e é claro que ele não pararia por aí: pouco tempo depois, ficaria responsável pelo aclamado Se a Rua Beale Falasse, nos levando de volta ao segregado Estados Unidos dos anos 1970, apenas para continuar sua jornada com a recém-estreada The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade.

Dessa vez, o realizador voltaria ainda mais no tempo, para o século XIX, apresentando uma sociedade racista que subjugava a comunidade afrodescendente em prol de reafirmar a supremacia branca – ainda mais levando em consideração que o enredo é ambientado no sul do território norte-americano. A adaptação, baseada no romance vencedor do Pulitzer de Colson Whitehead, apresenta uma versão alternativa do que realmente aconteceu e traz aos holofotes dois personagens principais, Cora (interpretada com exímia habilidade pela indicada ao Emmy Thuso Mbedu) e Caesar (Aaron Pierre). Ambos são escravos e vivem encarcerados em uma plantação de algodão, bombardeados por comentários execráveis e por punições severas de seus donos – isso é, até que a dupla resolve embarcar em uma ferrovia subterrânea e escapar em busca de uma vida nova.



É claro que resumir obra tão majestosa não é um trabalho fácil – e não faz jus ao que ela representa. De certa maneira, a narrativa apresentada por Jenkins e por seu competente time criativo não é novidade para nenhum de nós e até nutre de similaridades com o impecável ‘12 Anos de Escravidão’, de Steve McQueen, ou até mesmo do clássico ‘Amistad’, de Steven Spielberg. Entretanto, é notável o modo como conta-se esse enredo e de que forma a crueldade sofrida pelos negros se transforma numa pungente e reflexiva poética, aliando-se a incursões artísticas de tirar o fôlego e interpretações que devem faturar algumas honrarias na temporada de premiações.

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Cada elemento é arquitetado com a mais angustiante cautela, motivo pelo qual as sequências funcionam como construções pictóricas quase clássicas, misturando duas das artes essenciais do planeta para criar algo diferente daquilo a que estamos acostumados. É nesse âmbito que James Laxton, apropriando-se da fotografia, não se contenta às fórmulas dos dramas históricos, mas sim à sinestesia visual que traga informações novas ao público capítulo a capítulo – e, estendendo as ramificações para o roteiro, é notável como a atmosfera transmuta-se em gradação, apostando fichas numa sombria falta de prospecto, como acontece nos episódios ambientados no Tennessee, ou numa ínfima esperança que logo se esvai, como quando Cora e Caesar chegam à Carolina do Sul.

As performances são nada menos que viscerais e brutais. Mbedu rouba a cena ao encarnar Cora e ao deixar transparecer as múltiplas feridas que a acompanham desde pequena – o abandono da mãe, o sadismo de seus donos e as névoas de um futuro incerto. Como é de esperar, Jenkins promove um circense movimento de altos e baixos, nos convidando para um passeio de montanha-russa que não deixa nada de fora e não imprime nenhuma sensação desnecessária e forçada; pelo contrário, nota-se o modo como o realizador tem respeito pelos personagens e cultiva o terreno para que flores (ou ervas daninhas) cresçam na imensidão. Dessa forma, Cora não está protegida, mas é acolhida de modos variados por aqueles que querem o seu bem ou que apenas querem se aproveitar de uma condição condenável – por exemplo, quando ela cruza caminho com a fanática Ethel Wells (Lily Rabe) ou a distorcida mentalidade da Srta. Lucy (Megan Boone).

Mbedu também dá vida a uma química esplêndida quando ao lado de Pierre, mas principalmente pareada com Joel Edgerton, que está admirável como o caçador de escravos Arnold Ridgeway. Interpretado por Fred Hechinger em sua versão mais nova, Ridgeway é um complexo personagem que talvez tenha encontrado certa injustiça no mundo com a precoce morte da mãe e resolveu se aliar aos conservadores brancos da Geórgia para punir os negros não livres e deixar explícito quem manda na região. Os diálogos trocados entre os dois, que não se limitam apenas à verborragia ou à falta dela, funcionam como farpas agonizantes que nos fornecem um pouco mais de verdade àquilo que é proposto na série – isso sem falar que a dupla é a responsável por trazer dinamismo e dramaticidade ao lento ritmo da obra.

The Underground Railroad ascendeu em pouco tempo ao patamar de uma das melhores, senão a melhor série do ano. O exuberante e denso retrato dos Estados Unidos em uma das épocas mais deploráveis de sua história é trabalhado com minúcia, deixando que a produção ganhe voz por si mesma em vez de se atrever a chocar com perversidade questionável.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Barry Jenkins ganhou proeminência no cenário audiovisual contemporâneo em meados da década passada, quando trouxe às telonas a belíssima adaptação de Moonlight: Sob a Luz do Luar, filme ganhador de três estatuetas do Oscar. Para além da competente produção, Jenkins ficou a encargo tanto da direção quanto do roteiro para colocar em voga diversos temas de discussão de extrema importância, incluindo orientação sexual, homofobia, racismo e a desigualdade social – e é claro que ele não pararia por aí: pouco tempo depois, ficaria responsável pelo aclamado Se a Rua Beale Falasse, nos levando de volta ao segregado Estados Unidos dos anos 1970, apenas para continuar sua jornada com a recém-estreada The Underground Railroad: Os Caminhos para a Liberdade.

Dessa vez, o realizador voltaria ainda mais no tempo, para o século XIX, apresentando uma sociedade racista que subjugava a comunidade afrodescendente em prol de reafirmar a supremacia branca – ainda mais levando em consideração que o enredo é ambientado no sul do território norte-americano. A adaptação, baseada no romance vencedor do Pulitzer de Colson Whitehead, apresenta uma versão alternativa do que realmente aconteceu e traz aos holofotes dois personagens principais, Cora (interpretada com exímia habilidade pela indicada ao Emmy Thuso Mbedu) e Caesar (Aaron Pierre). Ambos são escravos e vivem encarcerados em uma plantação de algodão, bombardeados por comentários execráveis e por punições severas de seus donos – isso é, até que a dupla resolve embarcar em uma ferrovia subterrânea e escapar em busca de uma vida nova.

É claro que resumir obra tão majestosa não é um trabalho fácil – e não faz jus ao que ela representa. De certa maneira, a narrativa apresentada por Jenkins e por seu competente time criativo não é novidade para nenhum de nós e até nutre de similaridades com o impecável ‘12 Anos de Escravidão’, de Steve McQueen, ou até mesmo do clássico ‘Amistad’, de Steven Spielberg. Entretanto, é notável o modo como conta-se esse enredo e de que forma a crueldade sofrida pelos negros se transforma numa pungente e reflexiva poética, aliando-se a incursões artísticas de tirar o fôlego e interpretações que devem faturar algumas honrarias na temporada de premiações.

Cada elemento é arquitetado com a mais angustiante cautela, motivo pelo qual as sequências funcionam como construções pictóricas quase clássicas, misturando duas das artes essenciais do planeta para criar algo diferente daquilo a que estamos acostumados. É nesse âmbito que James Laxton, apropriando-se da fotografia, não se contenta às fórmulas dos dramas históricos, mas sim à sinestesia visual que traga informações novas ao público capítulo a capítulo – e, estendendo as ramificações para o roteiro, é notável como a atmosfera transmuta-se em gradação, apostando fichas numa sombria falta de prospecto, como acontece nos episódios ambientados no Tennessee, ou numa ínfima esperança que logo se esvai, como quando Cora e Caesar chegam à Carolina do Sul.

As performances são nada menos que viscerais e brutais. Mbedu rouba a cena ao encarnar Cora e ao deixar transparecer as múltiplas feridas que a acompanham desde pequena – o abandono da mãe, o sadismo de seus donos e as névoas de um futuro incerto. Como é de esperar, Jenkins promove um circense movimento de altos e baixos, nos convidando para um passeio de montanha-russa que não deixa nada de fora e não imprime nenhuma sensação desnecessária e forçada; pelo contrário, nota-se o modo como o realizador tem respeito pelos personagens e cultiva o terreno para que flores (ou ervas daninhas) cresçam na imensidão. Dessa forma, Cora não está protegida, mas é acolhida de modos variados por aqueles que querem o seu bem ou que apenas querem se aproveitar de uma condição condenável – por exemplo, quando ela cruza caminho com a fanática Ethel Wells (Lily Rabe) ou a distorcida mentalidade da Srta. Lucy (Megan Boone).

Mbedu também dá vida a uma química esplêndida quando ao lado de Pierre, mas principalmente pareada com Joel Edgerton, que está admirável como o caçador de escravos Arnold Ridgeway. Interpretado por Fred Hechinger em sua versão mais nova, Ridgeway é um complexo personagem que talvez tenha encontrado certa injustiça no mundo com a precoce morte da mãe e resolveu se aliar aos conservadores brancos da Geórgia para punir os negros não livres e deixar explícito quem manda na região. Os diálogos trocados entre os dois, que não se limitam apenas à verborragia ou à falta dela, funcionam como farpas agonizantes que nos fornecem um pouco mais de verdade àquilo que é proposto na série – isso sem falar que a dupla é a responsável por trazer dinamismo e dramaticidade ao lento ritmo da obra.

The Underground Railroad ascendeu em pouco tempo ao patamar de uma das melhores, senão a melhor série do ano. O exuberante e denso retrato dos Estados Unidos em uma das épocas mais deploráveis de sua história é trabalhado com minúcia, deixando que a produção ganhe voz por si mesma em vez de se atrever a chocar com perversidade questionável.

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