O final dos anos 2010 foi marcado pela insurgência de um novo tipo de narrativa, que vinha sido tratada como subgênero no passado e conquistou um terreno bastante fértil pelas mãos, principalmente, do aclamado realizador Jordan Peele. Suas duas principais obras, ‘Nós’ e ‘Corra!’, transformaram o terror em crítica racial e abriram portas para inúmeras investidas no cenário mainstream, além de terem conquistado aclamação pela crítica internacional e pelo público – o filme estrelado por Daniel Kaluuya inclusive conquistando o Oscar de Melhor Roteiro Original pela competente e arrepiante história. Agora, chegou a vez da Amazon Studios apostar suas fichas em uma série nos mesmos moldes, nos levando de volta para as décadas de 1950 e 1960 com a antologia ‘Them’.
Respaldando-se na Segunda Grande Migração estadunidense, em que milhões de afrodescendentes saíram dos estados sulistas e espalharam-se para o Meio-Oeste, o Nordeste e o Leste do país em busca de melhores oportunidades – ainda mais considerando a precarização da vida dos negros na Era Jim Crow e na crescente segregação racial promovida pela condenável ideologia do supremacismo branco. Dessa forma, a história é centrada em uma família que saiu de sua casa na Carolina do Norte e viajaram para Los Angeles, comprando uma belíssima casa em um subúrbio a princípio recheado de conforto – apenas para se mostrar um inferno na terra. Ao longo de dez episódios, os Emory enfrentam demônios interiores e um assédio moral constante de seus psicóticos vizinhos, que não aceitam uma família negra dividindo o mesmo ambiente que eles.
No centro desse agonizante turbilhão seriado, estão Henry (Ashley Thomas) e Livia “Lucky” (Deborah Ayorinde), casal que tentou deixar para trás os traumas do passado, mas foram alcançados por fantasmas que insistiam em fazê-los relembrar de todas as tragédias de sua vida no sul. Logo no primeiro episódio (um dos melhores pilotos dos últimos anos, diga-se de passagem), os dois presenciam momentos de puro terror e descobrem que, além de pessoas que os querem longe de lá, uma força sinistra se esconde nas paredes do lar e ameaça deixá-los loucos e fazê-los cometer os atos mais sinistros imagináveis. Entre vários pontos altos e alguns deslizes, que se concentram, na verdade, no roteiro, a produção merece ser conferida pela potência inenarrável do elenco protagonista, com menção honrosa aos atores supracitados e à encarnação quase diabólica de Alison Pill como Betty Wendell (o melhor papel de sua carreira até então).
É sempre complicado criar um enredo restrito; nesse caso, os capítulos dispõe-se em dez dias corridos que, diferente do que poderíamos imaginar, toma o tempo necessário para construir os arcos de cada persona e infundi-los com reviravoltas chocantes e um grafismo cru que, diferente da expressão própria de outras obras do gênero, é importante para a compreensão dos eventos que se desenrolam. Little Marvin, que faz sua estreia como showrunner no âmbito ficcional, já havia fornecido uma análise gritante sobre os Estados Unidos em 2006 com o documentário ‘The Time Is Now’ – e retorna pronto para a ação com uma dramatização de narrativas verdadeiras. Obviamente o espectro sobrenatural finca-se no imaginário popular e faz menção a diversas lendas urbanas, mas nunca deixando a realidade de lado: é dessa forma que os protagonistas são acompanhados por espíritos que tentam trazer o caos à tona.
Henry luta para mostrar que mereceu seu espaço como engenheiro de uma multinacional, à medida que é açoitado pelas memórias da II Guerra Mundial e pelo preconceito que sofreu no exército – materializado pelo cínico e assustador Homem do Sapateado; Lucky, por sua vez, ainda carrega as mágoas de ver o filho caçula ser morto impiedosamente por caipiras brancos, como se fosse um animal, culpando-se pela presença iminente do poderoso Homem do Chapéu Preto (um reverendo do século XVI que fez pacto com o Diabo e ficou preso entre os humanos); como se não bastasse, temos também as jovens Ruby Lee (Shahadi Wright Joseph), que secretamente sente vergonha de quem é, e a inocente Gracie Jean (Melody Hurd), assombrada pela arbitrária e inconsequente Srta. Vera. As tramas em questão se fundem em uma metafórica e consistente representação do que significava, para a comunidade afro-americana, viver entre os brancos.
Servindo como panorama para o velado racismo perpetuado até os dias de hoje, a série é uma homenagem ao melhor do terror psicológico e nutre de semelhanças aplaudíveis com títulos conterrâneos, desde a estética da direção, que ousa sair das fórmulas televisivas e arquiteta um claustrofóbico ciclo de horrores, até a pungente trilha sonora, cujo minimalismo é guiado pela contraditória força das cordas dissonantes, cada aspecto dos episódios é milimetricamente pensado para causar desconforto no público, para mostrar o lado mais execrável das pessoas que não aceitam as diferenças. Pill, ao interpretar Betty, faz um trabalho aplaudível que desencadeia inúmeros ataques histéricos e que prenuncia uma ruína de tirar o fôlego.
‘Them’ já estreou como uma obra subestimada e que provavelmente deve ter ferido o fraco ego de alguns espectadores. Importante e derradeira, é notável como a produção não tem papas na língua quando o assunto é o sofrimento secular causado pelo racismo – e os corolários atuais de sua incabível prática.