sexta-feira, abril 19, 2024

Crítica | Dois Papas – Fernando Meirelles encanta em comédia eclesiástica da Netflix

Filme Assistido durante o Festival de Toronto 2019

O peso da batina vem sempre acompanhado por diversos silogismos. Dogmas religiosos, posturas ritualísticas, maneirismos e burocracias que revelam um enorme distanciamento entre a mais alta cúpula do catolicismo e os seus fiéis. O Vaticano consolidou sua histórica trajetória como uma instituição imponente, observada avidamente e por diversas vezes intocável. Seus líderes – equivocadamente – permanecem como figuras santificadas e até mesmo impalpáveis diante dos seus e dos de fora. Mas Fernando Meirelles decide quebrar o silêncio abafado pelos cantos líricos que ecoam em sua suntuosa e ostensiva estrutura em Dois Papas, uma cinebiografia que faz da comédia o sabor ideal para um conto que é mais identificável do que poderia se esperar.

A troca entre papados foi amplamente televisionada e um tanto polêmica à sua época. O mundo viu o Papa Bento VXI abdicar da sua jornada vitalícia, entregando a responsabilidade nas mãos de uma figura pouco conhecida, mas que já possuía sua própria popularidade. Papa Francisco, de origem latina, assumia a responsabilidade em fevereiro de 2013, iniciando uma jornada bem avessa ao que já havíamos visto dentro do Vaticano. Mas as motivações, os dissabores, os questionamentos e as dúvidas que cercaram todo esse contexto permaneciam enclausuradas em um ambiente secreto, distante dos olhos e mentes curiosas da sociedade. E em Dois Papas, esse pequeno segredo é revelado ao público, mostrando – de maneira leve e cômica – as entranhas que toda essa atmosfera ritualística papal resguarda em si. Como um convite inesperado e inadvertido, somos convocados a entrar no Vaticano e especular aquelas conversas de bastidores que sempre despertou a curiosidade em tantos.

E aqui, o longa dirigido pelo brasileiro e roteirizado por Anthony McCarten – como uma adaptação de sua própria peça homônima, nos leva a conhecer a peculiar dinâmica relacional de duas figuras religiosas sempre tão cercadas por estigmas e simbolismos. Desmitificando ambos os papas, a produção os despe diante da audiência, por meio de diálogos desconfortáveis e irreverentes, que são cercados por um humor doce, sutil e dignamente eclesiástico, por razões óbvias. Ao apresentá-los como duas pessoas que, em sua essência, buscam entender e fazer a vontade de Deus, Dois Papas faz o serviço que o próprio Vaticano insistentemente não quer desempenhar, ao continuar apresentando suas figuras religiosas como arquétipos imaculados acima de qualquer suspeita, dignas de reverência e, naturalmente, longe da realidade.

E ao retirar Francisco e Bento dessa pesada áurea mítica e mitológica, Meirelles conquista a audiência com facilidade, despertando um interesse particularmente incalculado pela narrativa, que ainda é capaz de permanecer na neutralidade, sem preferências religiosas. Com uma trilha sonora original que emana o lirismo do catolicismo, o cineasta ainda faz um divertido contraste musical que extrai risos leves, transformando hits da cultura POP em versões romantizadas e eclesiásticas. Aqui, o clássico da Disco Music, Dancing Queen (Abba) ganha uma releitura delicada e quase teatral, ajudando a compor o tom do humor da trama. Ao seu lado, Blackbird, do Beatles, e a nova queridinha italiana, Bella Ciao, também são repaginadas ao compasso da trama com viés clerical, garantindo uma percepção incrivelmente apurada do roteiro, solidificando seus protagonistas como – eventualmente – duas figuras estranhamente identificáveis.

A harmonia da narrativa se torna completa pela excepcional caracterização dos veteranos Jonathan Pryce e Anthony Hopkins. Na pele dos papas Francisco e Bento XVI, respectivamente, eles entregam atuações sublimes e pontuais, que se assemelham com brilhantismo às figuras reais que encaram nas telonas. Do porte físico ao timbre da voz, os atores são a combinação perfeita de Dois Papas e divertem o público com a excentricidade de suas linguagens corporais, de seus maneirismos e até mesmo de suas personalidades, regadas das tradições de seus próprios países de origem. Sob um roteiro bem escrito e uma direção que explora as extremidades dos ângulos, ambos os astros se entregam em seus papéis, demonstram o quão à vontade estão na batina e conquistam o público, que ainda corre o risco de devanear na peculiar amizade que as consequências da vida proporcionaram entre os dois.

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Promovendo uma experiência que beira uma espiada de canto por trás dos pilares de mármore, Fernando Meirelles domina a direção da cinebiografia com maestria, explora a beleza plástica do Vaticano em suas tomadas e sabe exatamente quando entrar com o humor, adocicando-o com pitadas dramáticas, que só acrescentam e dão equilíbrio para a trama. De uma leveza impressionante, Dois Papas é a combinação perfeita de uma história bem condensada e de uma primorosa comédia inocente, que tantas vezes se perde nos cinemas em vulgaridades e piadas de mal gosto. Inesperadamente divertido, o novo filme da Netflix é aquele que vai unir famílias no sofá, independente de suas percepções religiosas.

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