Filme assistido durante o Festival de Sundance 2025
Grainer é um homem estoico de seu tempo, que caminha sob o silêncio e a simplicidade de uma existência plácida e singela. E como tudo na vida se transforma pelo amor, sua história ganha cores ao cruzar olhares com Gladys. Sua doçura e feminilidade inundam cada ambiente dessa pequena comunidade e encontram espaço no coração dessa figura até então vagante, andarilha em sua própria realidade. Train Dreams é um delicado drama sobre como a existência humana só realmente ganha valor quando partilhada. Percorrendo 80 anos de história, o longa de Clint Bentley é uma apaixonante reflexão sobre família, legado e memória – diante da pulsante América do século XIX, que se transformava, se adequava e se desenvolvia em meio às consequências da Revolução Industrial.
A vida de Grainer, brilhantemente vivido por Joel Edgerton, se molda ao amor por sua amada – encarnada pela talentosa Felicity Jones -, e pela idílica vida que constroem em meio aos rincões de uma floresta ampla e revigorante. A rotina agora se divide entre o desfrutar da plenitude de serem três, ele, ela e a pequena Katie, e seu trabalho na floresta como madeireiro. Distante da civilização e sem saber exatamente a extensão daquilo que faz, seu trabalho de fato reflete a evolução de toda uma nação. Construindo pontes e estruturas para trilhos de trem, suas mãos calejadas fazem parte do boom da engenharia de um país em efervescência, que ainda colhia os regalos do novo modelo de produção e da ascensão da energia a vapor.
Esse contraste entre a pacata vida no campo, as agruras de um trabalho árduo e todas as suas consequências é trazido às telas de maneira impecável pelas mãos de Bentley, mesmo responsável pelo excepcional e premiado Jockey e corroteirista do indicado ao Oscar 2025, Sing Sing. Com um olhar sensível e detalhado sobre um período tão particular da história americana, o cineasta faz do macro – contexto sociocultural e evolutivo – uma profunda análise do micro, sobre aqueles pequenos contos que habitam casas de madeira simplórias, onde famílias se reúnem e sonham com o futuro a partir do progresso que testemunham da janela de suas casas. Nos convidando para uma transformadora catarse, o drama é um retrato antigo, mas atemporal, a respeito da existência humana diante das mais diversas circunstâncias.
Um convite à contemplação da vida de um homem marcado pela dor, Train Dreams nos arrebata de forma surpreendente. De ritmo mais lento em seu primeiro ato, o filme é uma chama que queima lentamente e permite que seus personagens se desenvolvam à sua maneira, para que nossa experiência seja completa. Consumindo nossa atenção gradativamente por meio de seu roteiro, o longa de época não cansa de nos impressionar e ganha camadas ainda mais profundas em Joel Edgerton e em sua fascinante caracterização soturna, que se desabrocha na solidão e em um denso olhar que revela distanciamento de si, dos demais personagens e até mesmo da audiência.
Entregando a melhor performance de sua carreira, Edgerton é a epítome do sofrimento masculino como raramente o vemos nos cinemas. Despido de travas e completamente entregue à complexidade de Grainer, o ator prova ser um dos talentos mais valiosos que Hollywood possui e pouco valoriza. Tornando o silêncio e sua linguagem corporal a maior expressão artística que o filme entrega para o público, ele faz de Train Dreams seu cartão de visitas, à medida em que honra o poderoso texto que possui em mãos.
E como um filme que impera na vastidão do sofrimento abafado, Train Dreams diz muito em poucas palavras. Fazendo dos olhos exaustos de seu protagonista uma janela de oportunidade para que apreciemos a raridade que estar vivo de fato é, o drama não se rende ao pesar e nos toma em uma reflexiva e intimista experiência, nos envolvendo ainda em sua estonteante fotografia bucólica, que transforma vastas pradarias banhadas pela luz do sol em pinturas acolhedoras e reconfortantes. Apegando-se à beleza da imperfeita jornada que testemunhamos, o diretor Clint Bentley faz do tempo e das adversidades de Grainer um retrato emocionante e reflexivo sobre o que é plenitude e qual o nosso lugar na imensidão humana.
Nos arrebatando inesperadamente em seu segundo ato, o drama histórico lançado no Festival de Sundance 2025 é ainda uma inevitável meditação sobre o nosso senso de ser e estar, diante da grandiosidade do mundo que nos cerca. Narrando uma época onde a compreensão da existência humana se resumia a pequenas extensões de quilômetros e onde não tínhamos contato com o restante do planeta através da tecnologia, Train Dreams é a impactante história de um homem comum assombrado por seu passado e fascinado pelo futuro que testemunha desabrochar diante de seus olhos. Uma recordação da vida em seus tempos mais rudimentares, o filme de Clint Bentley é também um lembrete de que, na verdade, não precisamos de muito para ser feliz.
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