sábado , 23 novembro , 2024

Crítica | Trapaças e mentiras no 3º ano do aclamado drama ‘The Crown’

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Em 2016, a Netflix dava início ao que podemos considerar como uma de suas melhores investidas. A plataforma de streaming resolvia, àquela época, dramatizar através de uma perspectiva única a vida e o legado da família real britânica, mais especificamente abrindo as páginas do conturbado e controverso reinado de Elizabeth II. Não demorou muito para que The Crown, como ficou intitulada a produção, aglutinasse uma legião de fãs sedentos por tragédias inglesas – e, agora, chegamos à terceira temporada dessa série multimilionário. Ao contrário do que poderíamos imaginar (talvez uma decadência pressuposta pela descontínua qualidade de outras obras originais do serviço), a nova iteração não apenas mantém-se dentro de um coeso ritmo, mas arquiteta narrativas que ganham uma complexidade poética admirável e surpreendente em diversos aspectos

Dando um salto temporal de dez anos desde os últimos eventos, Claire Foy dá espaço para que a recém-vencedora do Oscar Olivia Colman dê vida à icônica monarca. Colman, conhecida por seus papéis em outras produções de época (A Favorita’ e ‘Assassinato no Expresso do Oriente’ são os exemplos mais explicativos), teria um complicado trabalho ao chegar em um nível similar ao de sua predecessora e, eventualmente, superá-la. Afinal, estamos lidando com uma Elizabeth que não mais lida com a inesperada transição de sua vida como princesa para um cotidiano regido por leis pétreas e milenares que condizem com a situação de uma nação inteira; agora, ela encontra-se em um período crucial de seu governo, lidando com mentiras, conluios e uma premedita decadência internacional que reflete a obsolescência britânica.



Colman não nos desaponta em nenhum momento; na verdade, ela se entrega a uma performance aplaudível que recuperar trejeitos de Foy e os incremente com uma sabedoria narcótica, viciante do começo ao fim. A atriz também aproveita o espaço que tem para construir uma figura empática em vez de simpática (como bem sabemos, a Rainha nunca se portou de forma amigável; preferia, sim, por se mostrar como racional, fria e propositalmente metódica). Foi através dessas acepções que compreendemos o motivo por sua personalidade ser tão irretocável: mesmo nas situações mais emotivas, ela não se dava ao luxo de derramar lágrimas, com breves exceções em que, quietamente, ela nos mostra a dor da perda.

Se Elizabeth foi o foco da primeira e, com menos força, da segunda temporadas, aqui sua presença permite que os outros personagens dividam o holofote. Os capítulos funcionam como explorações romantizadas das outras figuras reais, usando e abusando de acontecimentos verídicos para humanizar um núcleo familiar esteticamente estagnado. O irritante e impetuoso Príncipe Philip (Tobias Menzies) tenta encontrar sua importância ainda que colocado em segundo lugar e, por essa razão, descobre coisas sobre sua própria personalidade que o guia através de um coming-of-age tardio; o primogênito Charles (Josh O’Connor) e sua irmã, Anne (Erin Doherty), sofrem com as responsabilidades que lhes são impostas, obrigados a abandonar o que realmente acreditam em prol da manutenção secular de uma hereditariedade datada.

Mas é Helena Bonham Carter quem nos conquista desde sua primeira aparição. Dando vida à versão mais velha da Princesa Margaret, Carter continua os meneios rebeldes imortalizados por Vanessa Kirby nas iterações anteriores e mergulha numa brusca perda de identidade e sanidade; afinal, da mesma forma que outros membros da realeza inglesa, ela sempre foi colocada em reclusão, desejando, mais que tudo, ascender ao trono ou ao menos dividir as árduas tarefas da monarquia ao lado da irmã. Por mais que nutrisse de um amor por Elizabeth, Margaret sempre se sentiu menosprezada – e esse agonizante sentimento é delineado com perfeição no roteiro de Peter Morgan.

De fato, a narrativa e a condução cênica entram em uma belíssima explosão catártica, movida principalmente pelo estado primordial da melancolia. Diferente da espontaneidade artística vista nos dois primeiros ciclos, Morgan e sua competente equipe técnica traduz o desenrolar dos eventos baseando-se em uma tragédia shakespeariana, revestindo-a com a impactante sobriedade de cores mais cinzentas que gradativamente são abraçadas por um monocromático desespero. Em contraposição, os protagonistas também se veem em momentos de paz espiritual, “fugindo” do status quo que lhes precede antes do nascimento apenas para serem puxados de volta a uma letargia inescapável.

Dentre os múltiplos temas explorados, a série resolve se afastar do que já foi apresentado ao público e opta por ergue fundações delimitadas no paradoxo entre aparência e essência. A perspectiva platônica é expandida para tramas históricas, é claro, como a greve de mineradores contra o descaso governamental e as extenuantes jornadas de trabalho e a revolta do povo galês contra o imperialismo inglês; mas, nos bastidores, vemos que a realeza luta para se aproximar do público, atravessando uma corda-bamba que oscila entre o ridículo e as intenções benfazejas – incluindo um documentário televisivo que dá errado de absolutamente todos os jeitos.

Ao mesmo tempo que faz duras críticas à superficialidade da monarquia (aproveitando para se conectar com o errático parlamento), o enredo também se desdobra em contos de superação, desviando a atenção do ostensivo palácio e suas adjacências para algo mais concreto, palpável e inebriante de um modo que apenas Morgan consegue fazer.

O retorno de The Crown veio acompanhado de gigantescas expectativas e, num escopo não muito extraordinário, as cumpriu para além do que imaginávamos. Apesar da estória em questão não ser original, a série é talhada com minuciosa cautela e oferece, antes de mais nada, um convite singelo para que conheçamos um lado mais humano de seus personagens.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Dando um salto temporal de dez anos desde os últimos eventos, Claire Foy dá espaço para que a recém-vencedora do Oscar Olivia Colman dê vida à icônica monarca. Colman, conhecida por seus papéis em outras produções de época (A Favorita’ e ‘Assassinato no Expresso do Oriente’ são os exemplos mais explicativos), teria um complicado trabalho ao chegar em um nível similar ao de sua predecessora e, eventualmente, superá-la. Afinal, estamos lidando com uma Elizabeth que não mais lida com a inesperada transição de sua vida como princesa para um cotidiano regido por leis pétreas e milenares que condizem com a situação de uma nação inteira; agora, ela encontra-se em um período crucial de seu governo, lidando com mentiras, conluios e uma premedita decadência internacional que reflete a obsolescência britânica.

Colman não nos desaponta em nenhum momento; na verdade, ela se entrega a uma performance aplaudível que recuperar trejeitos de Foy e os incremente com uma sabedoria narcótica, viciante do começo ao fim. A atriz também aproveita o espaço que tem para construir uma figura empática em vez de simpática (como bem sabemos, a Rainha nunca se portou de forma amigável; preferia, sim, por se mostrar como racional, fria e propositalmente metódica). Foi através dessas acepções que compreendemos o motivo por sua personalidade ser tão irretocável: mesmo nas situações mais emotivas, ela não se dava ao luxo de derramar lágrimas, com breves exceções em que, quietamente, ela nos mostra a dor da perda.

Se Elizabeth foi o foco da primeira e, com menos força, da segunda temporadas, aqui sua presença permite que os outros personagens dividam o holofote. Os capítulos funcionam como explorações romantizadas das outras figuras reais, usando e abusando de acontecimentos verídicos para humanizar um núcleo familiar esteticamente estagnado. O irritante e impetuoso Príncipe Philip (Tobias Menzies) tenta encontrar sua importância ainda que colocado em segundo lugar e, por essa razão, descobre coisas sobre sua própria personalidade que o guia através de um coming-of-age tardio; o primogênito Charles (Josh O’Connor) e sua irmã, Anne (Erin Doherty), sofrem com as responsabilidades que lhes são impostas, obrigados a abandonar o que realmente acreditam em prol da manutenção secular de uma hereditariedade datada.

Mas é Helena Bonham Carter quem nos conquista desde sua primeira aparição. Dando vida à versão mais velha da Princesa Margaret, Carter continua os meneios rebeldes imortalizados por Vanessa Kirby nas iterações anteriores e mergulha numa brusca perda de identidade e sanidade; afinal, da mesma forma que outros membros da realeza inglesa, ela sempre foi colocada em reclusão, desejando, mais que tudo, ascender ao trono ou ao menos dividir as árduas tarefas da monarquia ao lado da irmã. Por mais que nutrisse de um amor por Elizabeth, Margaret sempre se sentiu menosprezada – e esse agonizante sentimento é delineado com perfeição no roteiro de Peter Morgan.

De fato, a narrativa e a condução cênica entram em uma belíssima explosão catártica, movida principalmente pelo estado primordial da melancolia. Diferente da espontaneidade artística vista nos dois primeiros ciclos, Morgan e sua competente equipe técnica traduz o desenrolar dos eventos baseando-se em uma tragédia shakespeariana, revestindo-a com a impactante sobriedade de cores mais cinzentas que gradativamente são abraçadas por um monocromático desespero. Em contraposição, os protagonistas também se veem em momentos de paz espiritual, “fugindo” do status quo que lhes precede antes do nascimento apenas para serem puxados de volta a uma letargia inescapável.

Dentre os múltiplos temas explorados, a série resolve se afastar do que já foi apresentado ao público e opta por ergue fundações delimitadas no paradoxo entre aparência e essência. A perspectiva platônica é expandida para tramas históricas, é claro, como a greve de mineradores contra o descaso governamental e as extenuantes jornadas de trabalho e a revolta do povo galês contra o imperialismo inglês; mas, nos bastidores, vemos que a realeza luta para se aproximar do público, atravessando uma corda-bamba que oscila entre o ridículo e as intenções benfazejas – incluindo um documentário televisivo que dá errado de absolutamente todos os jeitos.

Ao mesmo tempo que faz duras críticas à superficialidade da monarquia (aproveitando para se conectar com o errático parlamento), o enredo também se desdobra em contos de superação, desviando a atenção do ostensivo palácio e suas adjacências para algo mais concreto, palpável e inebriante de um modo que apenas Morgan consegue fazer.

O retorno de The Crown veio acompanhado de gigantescas expectativas e, num escopo não muito extraordinário, as cumpriu para além do que imaginávamos. Apesar da estória em questão não ser original, a série é talhada com minuciosa cautela e oferece, antes de mais nada, um convite singelo para que conheçamos um lado mais humano de seus personagens.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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