Filme assistido durante o Festival de Toronto 2019
Se inaugurando como um pequeno mundo, montado em formato miniatura, a narrativa se abre de maneira prática e característica, principalmente para o público norte-americano. Mr. Rogers começa sua história em seu cenário tradicional, compartilhando sobre um rapaz sofrido, que carrega mágoas, máculas e traumas de infância, oriundo de seu conturbado seio familiar. Para as audiências estrangeiras, a abertura da cinebiografia Um Lindo Dia na Vizinhança não nos remete à nada tão afetivo assim. Ícone com seu programa infantil nos Estados Unidos, para nós, o apresentador é uma figura distante. Mas rapidamente, o fator desconhecido se rompe, quando Tom Hanks assume a personificação mais serena deste homem que, no auge de seu seu sucesso, carisma, simplicidade e doçura, foi capaz de mudar vidas ao seu redor com a genuína delicadeza cristã ensinada por Cristo na Bíblia.
Ao longo de 33 anos, Fred Rogers foi o apresentador do programa Mister Rogers’ Neighborhood, atravessando gerações de crianças e ajudando a formar adultos com lições preciosas sobre coisas complicadas demais para os pequenos, como o luto, problemas familiares, entre tantas outras adversidades. Sua voz mansa e doce hipnotizava a audiência, que transformou uma figura quase imaculada em um membro familiar tão próximo. Mas sua autenticidade e genuinidade eram vistas por uma ótica mais cínica e sagaz por parte do jornalista Tom Junod, que no auge de sua arrogância e prepotência recebeu a missão de sua editora de desenvolver um perfil da famosa figura para a revista Esquire. Incrédulo – por suas próprias motivações pessoais -, ele invariavelmente acaba saindo em uma jornada de auto descoberta, ao perceber que o que era para ser uma simples entrevista, se transformaria em uma linda relação de amizade com o apresentador, onde o perdão, a cura e a libertação do passado marcariam sua vida para sempre.
Em Um Lindo Dia na Vizinhança, a cineasta Marielle Heller se apropria do belo artigo jornalístico de Junod, fazendo dele o seu material fonte para a base do roteiro assinado por Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster. Trazendo os elementos profundamente autobiográficos da matéria do jornalista, a trama se mescla em sua abordagem narrativa, relatando o processo de transformação dele na terceira pessoa. Mr. Rogers apresenta mais uma edição de seu programa, dessa vez ensinando aos cinéfilos uma lição muito maior que as demais já ensinadas ao longo de sua carreira. Aqui, o nome verdadeiro do autor é trocado para Lloyd Vogel por razões administrativas, mas todos os fatos conferem. E nas personificações de Hanks e de Matthew Rhys (Vogel), somos apresentados a uma narrativa inspiradora e hipnotizante, que à medida que leva o protagonista a se redescobrir como uma pessoa menos amarga e mais compassiva e esperançosa, produz na audiência um desejo irreparável e inerente de ser transformado pelo mais genuíno amor e deixar-se ser usado por ele para transformar tantos outros.
Trazendo elementos da formação cristã presbítera de Rogers às telas, a cinebiografia se esforça para honrar a memória deste grande homem, nos apresentando um Hanks diferente do que já vimos no passado. Mais maduro em sua idade e atuação, ele extrapola os seus próprios limites e caracteriza o apresentador com maestria. Dos trejeitos à sua linguagem corporal, a personificação do ícone infantil é impecável, revela novas camadas do vencedor do Oscar, nos fazendo perceber um nível de delicadeza que nem seus grandes papéis em Forrest Gump e Filadélfia trouxeram nos anos 90. Com o tom baixo e a voz visivelmente modificada, ele é um acalento apaixonante nas telas, nos abraça com sua percepção de Fred Rogers e faz da biografia o seu grande espetáculo. Ao seu lado, Rhys complementa sua retórica com habilidade, mas naturalmente se transforma em uma base de apoio para evidenciar o impacto do apresentador na vida de seu personagem.
Usando a estética do programa de Rogers como uma forma suave de conduzir as transições das cenas, Um Lindo Dia na Vizinhança traz um nível de sensibilidade diferenciado em sua direção, graças a Heller. Transcrevendo a essência dos escritos de Junod com delicadeza e precisão, o roteiro ainda envolve o público com afinco nos bastidores do artigo que se consagrou na época de seu lançamento e que se tornou a capa da revista Esquire de novembro de 1998. Emocionante do princípio ao fim, a produção é uma lição de vida transformadora para a audiência, emociona em seus diálogos e entrega uma trama que vidra nossos olhos, penetra nossa alma e nos deixa à deriva ao final, perplexos pelo poder que uma inspiradora narrativa é capaz de produzir no coração mais frio que existe.