É costumeiro que, ao longo da vida, tenhamos certos objetos, tangíveis ou não, que se tornam parte intrínseca da nossa memória, carregados com um valor sentimental inestimável e, muitas vezes, inexplicável. E é a partir da universalidade desse tema que o diretor Joachim Trier constrói uma nova obra-prima de sua carreira: ‘Valor Sentimental’, um dos principais títulos cotados para o Oscar, dá continuidade às explorações existencialistas do cineasta após seu impecável trabalho em ‘A Pior Pessoa do Mundo’, e transforma-se em um clássico dramático instantâneo, nos convidando ao microcosmos turbulento e recheado de ressentimentos de uma família desestruturada.
A trama é centrada em três personagens distintos que pertencem ao mesmo núcleo: Gustav Borg (Stellan Skarsgård), um prestigiado cineasta que abandonou a esposa e as filhas para continuar alcançando um estrelato que jamais o satisfez; Nora Borg (Renate Reinsve), a filha mais velha da família que seguiu a carreira artística no teatro e que nutre de uma crescente e inescapável frustração pela total falta de responsabilidade o pai; e Agnes Borg Pettersen (Inga Ibsdotter Lilleaas), irmã de Nora e filha de Gustav que, de certa maneira, funciona como uma mediadora entre duas partes que estão em constante conflito.
As coisas tomam um rumo ainda mais tenso e burocrático quando Gustav resolve fazer um projeto pessoal inspirado na história da própria família, tentando escalar Nora como a protagonista e eventualmente contratando a popular atriz Rachel Kemp (Elle Fanning) para encabeçar o longa-metragem. Remexendo em feridas ainda abertas e que não foram curadas com o tempo, o desenvolvimento do filme começa a refletir nas relações intergeracionais dos Borg de maneira impactante e profunda, reacendendo discussões que precisam ser finalizadas para que cada um siga em frente e enterre fantasmas de um passado não muito distante que insistem em assombrá-los, engolfando-os em um enfrentamento poderoso e pungente do que significa amar e perdoar.
Trier, assinando o roteiro ao lado de Eskil Vogt, arquiteta um profundo ensaio sobre a condição humana, restringindo-o a uma determinada análise que serve como ponto de encontro entre os diversos lados da complexidade do indivíduo: de um lado, a figura de Nora cai nas graças do público através de uma magnética performance e Reinsve, que revela um novo lado de sua versatilidade performática que caminhar entre a decepção, a felicidade e a frustração com destreza extrema; de outro, a delineação de Gustav explode em conflito quase beligerante, tentando se reaproximar das filhas após a morte da ex-esposa, mas recusando-se a tomar qualquer responsabilidade por sua vida sem escrúpulos e em detrimento daqueles que deixou para trás – tudo condensado pela presença memorável de Skarsgård em uma de suas atuações mais potentes.
Gustav é a personificação máxima de um individualismo que beira a autodestruição, colocando em xeque os fracos laços parentais que possui com Nora e Agnes para caprichos que se excedem e que o cega para uma realidade brutal e doentia. Ora, Gustav vê em Rachel uma extensão do que passou quando criança e dos traumas que carregou para a vida adulta, enxergando o projeto como uma terapia nada convencional que o isenta de quaisquer diálogos com quem realmente machucou e continua a machucar. Compondo essa derradeira atmosfera, Skarsgård e Reinsve são acompanhados por Lilleaas e Fanning em um trabalho ao mesmo tempo contraditório e complementar que irrompe das telonas com um comprometimento dramático inenarrável.
O diretor alcança uma sólida maturidade com seu mais novo projeto, retomando as incursões técnicas e artísticas de seu filme anterior e explorando ainda mais as questões existencialistas que trouxe para ‘A Pior Pessoa do Mundo’. É claro que boa parte das escolhas se afasta do que já foi explorado, mas há um emblemático fio condutor que desponta na belíssima e poética construção cênica, reiterada pela atmosférica melancolia que se apodera de quase todas as sequências, marcado pelo contraste entre um opressivo e complacente filtro azul que é pincelado por breves irrupções do vermelho e do verde. Dessa forma, Trier engendra um movimento de expansão e contração que coloca os personagens em um ciclo sem fim.
De certa maneira, Trier encontra sucesso em esquadrinhamentos que beiram o naturalismo ao transformar o cenário em personagem ativo dos arcos da família e das pessoas que cruzam caminho com ela: o imponente e quimérico casarão dos Borg, marcado por gerações de núcleos que percorreram seus infinitos corredores, é força-motriz para os problemas que precisam ser resolvidos, entremeado com ápices climáticos que colocam em xeque esse exercício mnemônico de algo que não pode ser apagado. E, à medida que as tensões se elevam, a fotografia de Kasper Tuxen faz questão de isolar os protagonistas e coadjuvantes em quadros solitários que culminam em um reencontro pessoal e interpessoal emocionante.
Quatro anos depois de ter nos arrebatado com uma obra-prima cinematográfica, Joachim Trier retorna com um projeto igualmente bem estruturado que navega por um realismo poético de tirar o fôlego, transformando personas cotidianas em estudos criativos e filosóficos que merecem ser apreciados em sua completude. Mais do que isso, ‘Valor Sentimental’ sagra-se como um dos melhores dramas da década por saber o que está fazendo e garantir que seja um reflexo de uma temática universal que nos aproxima pouco a pouco de cada um dos personagens.