Henry Selick pode não ter uma carreira extremamente prolífica no cenário do entretenimento, mas, com certeza, merece nossa atenção. Selick fez sua estreia com a clássica animação musical ‘O Estranho Mundo de Jack’ e, uma década e meia depois, encabeçou a icônica e arrepiante ‘Coraline e o Mundo Secreto’ – ambos os títulos considerados alguns dos melhores do gênero em questão. Sua visão única o transformou em um dos realizadores mais interessantes da contemporaneidade e, depois de um longo hiato, ele retorna em uma aguardada colaboração com a Netflix intitulada ‘Wendell & Wild’.
O longa-metragem acompanha Kay (Lyric Ross), uma jovem garota que vive na pequena cidade de Rust Bank que perde os pais em um trágico acidente. Mergulhando em uma espiral de raiva e melancolia, culpando-se pela morte deles, ela toma decisões erradas, é encarcerada em uma prisão juvenil e acredita que sua vida será apenas uma sucessão de infortúnios – isso é, até o destino a levar de volta para sua abandonada cidade natal e direto para uma escola católica onde poderá se reabilitar e retornar à sociedade. Entretanto, isso não é tudo: Kay também é parte de uma complicada trama que envolve dois demônios cujo maior desejo é escapar de sua punição no submundo e abrirem um parque de diversões, Wendell (Keegan-Michael Key) e Wild (Jordan Peele) – e que veem na garota uma oportunidade de irem para o Mundo dos Vivos e conseguirem tudo o que sempre sonharam.
Considerando que essa é uma história de Selick, o teor sobrenatural é mais do que bem-vindo – e isso não é tudo: o roteiro também traz a presença de Peele, um dos realizadores mais elogiados da atualidade, responsável por títulos como ‘Corra!’, ‘Nós’ e ‘Não! Não Olhe!’. O problema, todavia, é que o escopo da produção não é grande o suficiente para comportar tamanho talento, esbarrando em diversos convencionalismos e deslizes que se espalham pela narrativa como máculas constantes. O resultado é uma conturbada jornada que tenta dizer mais do que consegue – e que se respalda demais em um visual irretocável para mascarar os obstáculos encontrados.
Selick sempre teve um olhar certeiro para o stop-motion, arquitetando mundos incríveis e de tirar o fôlego ao lado de mãos habilidosas. Aqui, o classicismo erudito de ‘O Estranho Mundo’ e a fantasia sombria de ‘Coraline’ se amalgama e se desconstrói em uma mistura de terror e comédia que ganha força constante por uma hora e quarenta de exibição. O próprio design dos personagens parece referenciar a arte asiática do origami, com dobraduras propositalmente exageradas para diferenciá-los – e o uso das cores é divino e impecável, como era de se esperar: temos um conflito de tons complementares que urge em cada fio de cabelo desenhado, contrastando a vida com a morte, a apatia com a ação (não é surpresa, pois, que Rust Bank é pintada em um triste tom de cinza, branco e preto, desprovida das vibrantes luzes que outrora lhe davam ânimo).
A temática explorada é o luto – algo que é encarnado muito bem pela protagonista e guiada pelo restante dos personagens. Afinal, Wendell e Wild funcionam como os demônios pessoais de Kay, prometendo trazer os pais dela de volta dos mortos caso sejam invocados para o Mundo dos Vivos; todavia, eles mesmos se tornam peças em um jogo muito mais perigoso e alicerçado pela presença de Lane (David Harewood) e Imgard Klaxon (Maxine Peake), dois burgueses que querem destruir a cidade e transformá-la em uma grande prisão privada apenas para lucrarem. De fato, há tentativas consideráveis de condenação do capitalismo predatório promovidas por Selick e Peele – mas as coisas são superficiais demais para nos levarem a pensar além do óbvio e além do que é servido.
A animação ganha pontos ao trazer uma representatividade significativa às telonas, tratando os espectros de gênero e raça com fluidez aplaudível e necessária para os dias de hoje – ora, temos Angela Bassett interpretando a Irmã Helley, que ajuda Kay a lidar com os demônios e com o poder premonitório que ela ainda não sabe controlar; de outro lado, Sam Zelaya encarna Raúl Cocolotl, um menino trans apaixonado por arte que se torna confidente de Kay. Mais uma vez, a produção esbarra em clichês e não consegue decidir em qual caminho seguir, fundindo diversas tramas em uma transbordante e cansativa aventura que, infelizmente, se rende à previsibilidade. Temos inclusive uma incursão à la deus ex machina que quebra a suposta mitologia inventada pelos criadores.
É sempre bom ver Selick de volta ao cenário mainstream – mas ‘Wendell & Wild’, por mais puro que seja de coração, não faz jus ao que o cineasta já nos deu em um passado não muito distante. Para as crianças, a animação deve agradar pelas inflexões imagéticas. Mas não espere nada fora da curva ou embebido em originalidade (e, se você acredita encontrar isso no filme, garanto que irá se decepcionar).