A saga literária ‘Desventuras em Série’ tornou-se uma das mais aclamadas e conhecidas do início dos anos 2000, popularizando-se através de uma melancólica e pessimista narrativa centrada em três jovens órfãos, Violet, Klaus e Sunny Baudelaire, que se tornam alvo do perigoso e psicótico Conde Olaf após a trágica morte dos pais em um incêndio criminoso. E, após o lançamento dos primeiros volumes, coube ao diretor Brad Silberling (‘Gasparzinho: O Fantasminha Camarada’) levar a primeira adaptação dos romances de Lemony Snicket (pseudônimo de Daniel Handler) às telonas em 2004.
À época do lançamento, o filme teve uma recepção um tanto quanto considerável em meio à crítica e o público – mas o consenso geral apontou para um tom mais cômico em relação aos escritos originais, o que desconstruiu a niilista atmosfera em prol de uma tragicomédia que, anos depois, permanece sólida o suficiente para nos envolver desde os primeiros minutos. Afinal, Silberling mergulhou de cabeça em um complexo cosmos que analisa as ambiguidades morais do ser humano e o amadurecimento obrigatório e mandatório de três crianças sem prospecto e constantemente lidando com a perda – reformulando questões pessimistas em uma ácida análise da motivação do indivíduo que, infelizmente, não foi tão bem aproveitada como merecia.
A trama, como já mencionado, é centrada em Violet (Emily Browning), uma jovem de catorze anos com aptidão inexplicável para invenções; Klaus (Liam Aiken), um bibliófilo de doze anos; e Sunny (Kara e Shelby Hoffman), uma infante mais sagaz do que aparenta que ama morder as coisas. Voltando da praia em um dia nublado e úmido, o trio de irmãos descobre, através do bancário da família, Sr. Poe (Timothy Spall), que os pais morreram em um trágico incêndio, deixando-os órfãos e sob os cuidados de um parente distante, o misterioso e problemático Conde Olaf (Jim Carrey), cuja aterrorizante monocelha e cujo sombrio casarão são apenas extensões de uma personalidade psicótica que deseja apenas colocar as mãos na fortuna dos Baudelaire e dispensá-los da maneira que conseguir.
Quando pensamos nos romances de Handler, é notável como o narrador, que dialoga diretamente com os leitores, mergulha em uma constante série de infortúnios que torna a vida dos irmãos um espetáculo de horror e de luto; no longa-metragem, Silberling aposta fichas em uma mistura de drama e comédia que, por mais que deslize aqui e ali, enche as telas com um cuidado estético e performático que merecia maior reconhecimento do que teve. Através de uma estrutura quatripartida que revela as atribulações da vida como ela é, fornecendo um melancólico prospecto de que a única certeza é a morte – mas é o combustível necessário para que procuremos uma forma de tornar a árdua realidade em algo reconfortante, por mais complicada que essa tarefa seja. E, em meio a isso, Violet, Klaus e Sunny descobrem que têm tudo o que precisam para se protegerem.
Browning, Aiken e as irmãs Hoffman (que se revezam no papel de Sunny) encarnam os protagonistas de maneira aplaudível, pegando os elementos-chave dos livros e transmutando-os a seu bel-prazer, fornecendo camadas a um relacionamento fraternal que é constantemente bombardeado por forças externas. E, compondo o elenco, Carrey rende-se a uma de suas melhores performances como o vilanesco Conde Olaf, utilizando todo a comédia corporal que eternizou em inúmeros papéis para uma teatral e propositalmente exagerada atuação que, em uma arquitetura metadiegética, o expande para as múltiplas personas que encarna ao longo do filme – e que nos faz odiá-lo e amá-lo ao mesmo tempo.
Uma das principais críticas negativas ao projeto foi destinada à sua curta duração, que condensou os romances de Handler em uma breve iteração de pouco mais de cem minutos. Porém, a despeito da fidelidade da adaptação, a atração funciona através das mensagens que deseja nos fornecer e à competência de um forte time criativo e performático – que inclui Billy Connolly como o paternal e protetor Tio Monty, Meryl Streep como a preocupada e hipocondríaca Tia Josephine, e Catherine O’Hara como Justice Strauss, vizinha de Olaf e uma ingênua mulher que é atraída, inadvertidamente, aos planos maléficos do antagonista, e funciona como uma boa base coadjuvante para a bem-vinda conclusão da narrativa.
Silberling faz um sólido trabalho, acompanhado de atores e atrizes de grande calibre para ajudá-lo nessa empreitada, mas não se pode falar de ‘Desventuras em Série’ sem falar de Emmanuel Lubezki. Considerado um dos mais importantes diretores de fotografia da sétima arte, Lubezki transforma o longa-metragem em uma obra de arte visual, em que une naturalismo e fantasia em um mesmo lugar, promovendo um encontro entre dois tipos de iluminação que convergem para um mesmo objetivo: é notável a “aparição surpresa” de feixes de luz que denotam um apreço envolvente pelo expressionismo, principalmente nas sequências de maior carga dramática ou da efêmera esperança que cai sobre os órfãos. E, em contraste, temos o constante uso de uma iluminação “desmotivada”, por assim, que reflete a melancolia derradeira que acompanha os protagonistas e que aparece em sequências abertas, reiterando o inescapável ciclo de destruição e abandono que os acompanha.
‘Desventuras em Série’ é uma joia subestimada da sétima arte que, mais de vinte anos depois de seu lançamento nos cinemas, merece ser apreciada em sua completude – e que nos encanta pelo comprometimento que tem em honrar os escritos de Daniel Handler de maneira despojada e enervante, ao mesmo tempo.
Lembrando que o filme está disponível para aluguel no Prime Video.
