sábado , 2 novembro , 2024

Dica de Filme | ‘As Bruxas de Salem’: um poderoso clássico estrelado por Daniel Day-Lewis e Winona Ryder

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A atemporalidade das peças de Arthur Miller é um ponto sempre muito importante a ser levado em consideração quando alguém resolve mergulhar fundo em seus textos. Ainda que Morte de um Caixeiro Viajante’ configure-se como uma de suas investidas mais famosas, trazendo inúmeros temas para uma autorreflexão bruta e realista por parte público, é em As Bruxas de Salem que o dramaturgo encontra sua real identidade, criando um microcosmos que mistura passado e presente através de uma narrativa sobrenatural e analítica. Além disso, faz-se necessário entender que as criações de Miller procuravam analisar a sociedade norte-americana de modo a encontrar um real significado para “sonho americano” – lema de vida carregado por grande parte da população; desse modo, não é nenhuma surpresa que os diálogos que arquiteta sejam carregados de uma perspectiva sociológica muitas vezes mascarada por arquétipos cênicos. 

Toda essa extensa estrutura foi relida para as telonas em 1996 pelo diretor Nicholas Hytner. Aqui, o realizador consegue manter viva a poesia das sequências mais dramáticas e utilizar elementos teatrais para compor sua própria subjetividade honrosa – podendo não acertar em todas as incursões que se preza a desenvolver, mas contribuindo para uma interpretação bem-vinda da peça e oferecendo uma visão mística e, ao mesmo tempo, sociológica do universo de Miller.

O filme se inicia com uma sequência angustiante, na qual inúmeras garotas correm em direção a uma enevoada floresta para se encontrarem com a escrava africana Tituba (Charlayne Woodard), a qual prometeu ajudá-las em alguns feitiços amorosos. Cada jovem traz um pequeno souvenir, por assim dizer, para que seus pretendentes possam se apaixonar por elas – e nesse meio há a figura pálida e inexpressivamente assustadora de Abigail Williams (Winona Ryder), cuja personalidade inclina-se para o adultério e para a vingança (afinal, ela deseja a morte da esposa de seu “futuro homem”). Toda a construção imagética é pautada numa montagem brusca e que reflete o inebriante sentimento de confusão e tensão que se alastra à medida que as moças começam a dançar em torno de uma fogueira; o uso de cores mais frias ressalta a morbidez da cena, inclusive quando contrastado com a acidez do sangue que eventualmente dá às caras. 

E é com a resolução desse pequeno prólogo que as coisas começam a desandar. Uma das garotas mais jovens acaba tendo um ataque de pânico e fica desacordada por vários dias, atraindo a atenção do Reverendo Parris (Bruce Davidson), que também presenciou as personagens em questão dançando nuas no meio da floresta. A partir daí, percebemos que a narrativa toma um rumo mais religioso e tradicionalista que conversa com os valores cristãos da época, marcada pela imigração da comunidade inglesa para a América e a continuação de sua cultura conservadora. E levando em consideração o período (final do século XVII), teremos sim uma grande influência da mentalidade pós-Inquisição, que perdurou durante vários anos e foi um dos maiores responsáveis pela condenação em massa da cidade de Salem. 

Abigail é a encarnação do individualismo; ainda que pregue valores católicos e porte-se como uma “moça de respeito” aos olhos daquela comunidade patriarcal, ela pensa apenas em si mesma e como pode agir em prol de salvar-se da forca. Ela, pois, consegue convencer grande parte das jovens que a acompanharam para a floresta e começa uma rede de mentiras, dizendo-se portar a Luz de Deus e ter sido escolhida para limpar o vilarejo dos malefícios do Diabo – ou seja, ela começa a mentir. E se há algo que Miller, responsável também pelo roteiro, sabe fazer de melhor é manter-se fiel às raízes que resolve explorar, principalmente através do diálogo e dos acontecimentos.

Sabemos que o filme traz sua essência teatral de forma bastante clara; desse modo, após chegarmos a meados do segundo ato, passamos a encarar uma crescente e proposital monotonia e repetição de fatos, que nos enclausura em uma inescapável e indestrutível engrenagem ideológica. Todavia, sua perspectiva tenta ousar indo além do óbvio, mas acaba rendendo-se a zona de conforto e opta por planos gerais que enquadrem a maior parte dos personagens, visto que estão todos presos em uma grande bolha de falso moralismo e hipocrisia exacerbados. O que Hytner faz é permitir que a câmera deslize pelo cenário e mude o foco do público para o que deseja ser visto – oferecendo uma espécie de metalinguagem à época em que a história ocorre.

O conflito principal emerge quando uma parcela da comunidade ousa enfrentar o poder incontestável da Igreja, a qual é representada tanto pelo Reverendo quanto pelo Juiz Danforth (Paul Scofield). Tal grupo é inconscientemente liderado pela transgressora figura de John Proctor (Daniel Day-Lewis), um fazendeiro com bastante afinidade pelas causas nobres e que percebe em Abigail uma complexa mesquinhez cujas consequências tornam-se drásticas. Através de todas essas mentiras, Proctor acaba perdendo tudo, inclusive sua esposa Elizabeth (Joan Allen) para acusações sem fundamento e que servem como base para condenar mais da metade dos habitantes à forca. Ele eventualmente encontra a sua ruína e sua aceitação em um momento de epifania social chocante e que leva a um dos gloriosos momentos do filme: o frame final. 

As Bruxas de Salem é uma obra que envelheceu muito bem e que merece ser revista. O estruturalismo poético dialoga com força com o arcabouço de Miller – e, mesmo com os deslizes supracitados, é notável como o filme auxilia a imortalizar o legado de um dos maiores dramaturgos de todos os tempos.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Toda essa extensa estrutura foi relida para as telonas em 1996 pelo diretor Nicholas Hytner. Aqui, o realizador consegue manter viva a poesia das sequências mais dramáticas e utilizar elementos teatrais para compor sua própria subjetividade honrosa – podendo não acertar em todas as incursões que se preza a desenvolver, mas contribuindo para uma interpretação bem-vinda da peça e oferecendo uma visão mística e, ao mesmo tempo, sociológica do universo de Miller.

O filme se inicia com uma sequência angustiante, na qual inúmeras garotas correm em direção a uma enevoada floresta para se encontrarem com a escrava africana Tituba (Charlayne Woodard), a qual prometeu ajudá-las em alguns feitiços amorosos. Cada jovem traz um pequeno souvenir, por assim dizer, para que seus pretendentes possam se apaixonar por elas – e nesse meio há a figura pálida e inexpressivamente assustadora de Abigail Williams (Winona Ryder), cuja personalidade inclina-se para o adultério e para a vingança (afinal, ela deseja a morte da esposa de seu “futuro homem”). Toda a construção imagética é pautada numa montagem brusca e que reflete o inebriante sentimento de confusão e tensão que se alastra à medida que as moças começam a dançar em torno de uma fogueira; o uso de cores mais frias ressalta a morbidez da cena, inclusive quando contrastado com a acidez do sangue que eventualmente dá às caras. 

E é com a resolução desse pequeno prólogo que as coisas começam a desandar. Uma das garotas mais jovens acaba tendo um ataque de pânico e fica desacordada por vários dias, atraindo a atenção do Reverendo Parris (Bruce Davidson), que também presenciou as personagens em questão dançando nuas no meio da floresta. A partir daí, percebemos que a narrativa toma um rumo mais religioso e tradicionalista que conversa com os valores cristãos da época, marcada pela imigração da comunidade inglesa para a América e a continuação de sua cultura conservadora. E levando em consideração o período (final do século XVII), teremos sim uma grande influência da mentalidade pós-Inquisição, que perdurou durante vários anos e foi um dos maiores responsáveis pela condenação em massa da cidade de Salem. 

Abigail é a encarnação do individualismo; ainda que pregue valores católicos e porte-se como uma “moça de respeito” aos olhos daquela comunidade patriarcal, ela pensa apenas em si mesma e como pode agir em prol de salvar-se da forca. Ela, pois, consegue convencer grande parte das jovens que a acompanharam para a floresta e começa uma rede de mentiras, dizendo-se portar a Luz de Deus e ter sido escolhida para limpar o vilarejo dos malefícios do Diabo – ou seja, ela começa a mentir. E se há algo que Miller, responsável também pelo roteiro, sabe fazer de melhor é manter-se fiel às raízes que resolve explorar, principalmente através do diálogo e dos acontecimentos.

Sabemos que o filme traz sua essência teatral de forma bastante clara; desse modo, após chegarmos a meados do segundo ato, passamos a encarar uma crescente e proposital monotonia e repetição de fatos, que nos enclausura em uma inescapável e indestrutível engrenagem ideológica. Todavia, sua perspectiva tenta ousar indo além do óbvio, mas acaba rendendo-se a zona de conforto e opta por planos gerais que enquadrem a maior parte dos personagens, visto que estão todos presos em uma grande bolha de falso moralismo e hipocrisia exacerbados. O que Hytner faz é permitir que a câmera deslize pelo cenário e mude o foco do público para o que deseja ser visto – oferecendo uma espécie de metalinguagem à época em que a história ocorre.

O conflito principal emerge quando uma parcela da comunidade ousa enfrentar o poder incontestável da Igreja, a qual é representada tanto pelo Reverendo quanto pelo Juiz Danforth (Paul Scofield). Tal grupo é inconscientemente liderado pela transgressora figura de John Proctor (Daniel Day-Lewis), um fazendeiro com bastante afinidade pelas causas nobres e que percebe em Abigail uma complexa mesquinhez cujas consequências tornam-se drásticas. Através de todas essas mentiras, Proctor acaba perdendo tudo, inclusive sua esposa Elizabeth (Joan Allen) para acusações sem fundamento e que servem como base para condenar mais da metade dos habitantes à forca. Ele eventualmente encontra a sua ruína e sua aceitação em um momento de epifania social chocante e que leva a um dos gloriosos momentos do filme: o frame final. 

As Bruxas de Salem é uma obra que envelheceu muito bem e que merece ser revista. O estruturalismo poético dialoga com força com o arcabouço de Miller – e, mesmo com os deslizes supracitados, é notável como o filme auxilia a imortalizar o legado de um dos maiores dramaturgos de todos os tempos.

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