sábado , 2 novembro , 2024

Dica de Fim de Semana | ‘Histórias Cruzadas’ é um filme que deve ser assistido, mas com visão crítica

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Quem ouve o nome Tate Taylor pode não reconhecê-lo de imediato, mas certamente já ouviu falar de sua contribuição para o nicho dramático do cinema contemporâneo. Depois de ter contracenado ao lado de Jennifer Lawrence no aclamado Inverno da Alma’, o ator resolveu mudar um pouco de posição e migrar para o outro lado das câmeras, abraçando a adaptação do romance A Resposta’, de Kathryn Stockett. Após somente dois anos de seu lançamento, o sucesso imediato da obra ganhou sua versão para as telonas com um elenco de ponta e cuja aceitação foi bem maior do que a esperada: Histórias Cruzadas, título concedido ao longa-metragem, tornou-se uma memorável incursão cinematográfica – mas que, em virtude de intenções conflituosas, deve ser encarado de forma crítica e como uma produção meramente voltada para o entretenimento, e não para educar.

A história, ambientada nos primeiros anos da década de 1960, tem como cenário principal a pequena e conservadora cidade do meio-oeste estadunidense Jackson, no Mississippi. Assim como inúmeros outros aglomerados urbanos e interioranos, Jackson é marcada por uma profunda segregação entre brancos e negros, cuja atitude é rechaçada pelos grandes centros cosmopolitas e coloca em voga um racismo estrutural que mantém traços com o período colonial do país. Entretanto, todo esse escopo político não é tratado com crueza e falta de sensibilidade por Taylor, que também fica responsável pelo roteiro: as críticas são traduzidas como os próprios personagens, em especial as criadas negras (cuja tradução para o inglês, the help, é o que dá título ao filme), mas não abandonado a triste perspectiva adotada por Stockett (que não consegue fornecer o protagonismo merecido a essas construções).

De qualquer modo, a estrutura narrativa segue em um engessamento proposital até o final do primeiro ato. Todos os acontecimentos são narrados por Aibileen “Aibee” Clark (Viola Davis), empregada de Elizabeth Leefolt (Ahna O’Reilly), uma socialite branca e completamente ingênua que é influenciada por figuras de maior poder e maior ameaça da comunidade. Sua patroa sofre de depressão pós-parto e, além de não ligar para sua primogênita, que fica aos cuidados de Aibee, acabou engravidando de novo e faz de tudo para ser aceita em seu deturpado grupinho de amigas. Partindo de outra perspectiva, seguimos a história de Minny (Octavia Spencer), cuidadora oficial de uma velha senhora que é obrigatoriamente acolhida pela filha, Hilly (Bryce Dallas Howard), presidente de uma espécie de comitê caucasiano que repete inúmeras falácias para manter a segregação racial viva.

Eventualmente, uma terceira figura chega à cidade, representada pela aspirante à escritora Skeeter (Emma Stone), retornando para casa após se formar na faculdade e reencontrando-se com suas “amigas”. Após passar vários anos longe, percebe que o mundo que havia deixado para trás é um reflexo de tudo o que repudia, desde mentiras até a questão do racismo. Ela já não consegue manter relações com a mãe doente (encarnada pela incrível Allison Janney), nem corroborar com os ataques constantes de Hilly ou Elizabeth. Em diversos momentos, Skeeter lança alguns comentários irônicos, mas logo é repreendida por uma maioria preconceituosa e cuja mentalidade é praticamente medieval.

Não é surpresa que, após a apresentação desse “mundo comum”, as coisas venham a mudar. Parece compulsório que essa mudança seja chamada, mas Taylor faz questão de que tudo se mova com fluidez e naturalidade, ainda que peque em um excessivo melodrama aqui ou ali: Skeeter desenvolve um plano para expor a cidade e, ao mesmo tempo, conseguir alavancar sua carreira como literária. Após várias tentativas sutis de se aproximar das empregadas e de acontecimentos tristes e angustiantes, Aibee e Milly cedem aos pedidos da jornalista e resolvem prestar depoimentos explanando a vida de uma serviçal negra numa sociedade branca. Aqui, o filme faz questão de mostrar a perspectiva das minorias, sem apelar por discursos prontos: Davis e Spencer não apenas fazem um incrível trabalho, como criam mágica em todos as sequências em que contracenam. As atrizes exploram âmbitos de sua versatilidade artística que oscilam do trágico ao cômico, numa coesão de tirar o fôlego e que certamente representa um dos ápices de toda a obra.

E é claro que não podemos tirar mérito do restante do elenco. Stone faz um ótimo trabalho como a ingênua-porém-corajosa Skeeter, ainda que ceda a alguns clichês esperados, principalmente quando descobre que sua mãe teve atitudes idióticas e demitiu sem mais nem menos sua ex-ama-de-leite Constantine (Cicely Tyson) – quem realmente a criou. De outro lado, é inegável dizer que amamos odiar a simples presença de Howard: sua personagem é tão mesquinha e nojenta que chega a ser torturante olhá-la por mais de cinco segundos, e a atriz entrega-se de forma completa ao papel. Sua personalidade retrógrada vai de encontro a de outra personagem, Celia (Jessica Chastain), uma mulher feliz e otimista ao extremo que não compreende o que ocorre à sua volta e encara a relação entre negros e brancos com a maior naturalidade possível.

Os inúmeros jogos e embates conflituosos dão mais mobilidade à história e convergem em um ápice dramático muito interessante que não se arrasta e deixa a resolução em uma abertura aceitável. O diretor pode até não inovar muito na direção, mantendo-se em sua zona de conforto, mas cria atmosferas críveis o suficiente para nos manter envolvidos – e até mesmo quando brinca apenas com o campo-contracampo, abre espaço para esculpir diálogos e arrancar performances emocionantes, principalmente da dupla Davis-Spencer, ambas merecendo sem sombra de dúvida as duas indicações ao Oscar.

Um dos pontos a serem mencionados aqui, em relação à questão estética, é a incrível paleta de cor: o longa tem como tema-base a mudança através da palavra e dos escritos, provindos daqueles que menos esperamos (no caso, Aibee é real responsável pelo livro, o qual foi apenas viabilizado por Skeeter). Em colaboração a Taylor, o diretor de arte Curt Beech opta com magnífica maestria a utilização de colorações amareladas que se tornam cada vez mais fortes e saturadas conforme nos aproximamos da conclusão: a princípio, as cores monocromáticas e pastéis mesclam-se a uma fotografia apagada, apenas para darem lugar a uma iluminação bem mais concreta e presente que ressalta o amarelo e, consequentemente, a irreversibilidade dos acontecimentos.

The Help (2011)
L-R Octavia Spencer and Viola Davis

Histórias Cruzadas pode até parecer pueril quando olhamos pela superfície, mas traz uma carga crítica e catártica muito maior do que lhe damos crédito. Mesmo com os deslizes óbvios e as inúmeras controvérsias que geraram discussão nos anos seguintes, o resultado cinematográfico é bem positivo ao se configurar como uma sólida peça da sétima arte.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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A história, ambientada nos primeiros anos da década de 1960, tem como cenário principal a pequena e conservadora cidade do meio-oeste estadunidense Jackson, no Mississippi. Assim como inúmeros outros aglomerados urbanos e interioranos, Jackson é marcada por uma profunda segregação entre brancos e negros, cuja atitude é rechaçada pelos grandes centros cosmopolitas e coloca em voga um racismo estrutural que mantém traços com o período colonial do país. Entretanto, todo esse escopo político não é tratado com crueza e falta de sensibilidade por Taylor, que também fica responsável pelo roteiro: as críticas são traduzidas como os próprios personagens, em especial as criadas negras (cuja tradução para o inglês, the help, é o que dá título ao filme), mas não abandonado a triste perspectiva adotada por Stockett (que não consegue fornecer o protagonismo merecido a essas construções).

De qualquer modo, a estrutura narrativa segue em um engessamento proposital até o final do primeiro ato. Todos os acontecimentos são narrados por Aibileen “Aibee” Clark (Viola Davis), empregada de Elizabeth Leefolt (Ahna O’Reilly), uma socialite branca e completamente ingênua que é influenciada por figuras de maior poder e maior ameaça da comunidade. Sua patroa sofre de depressão pós-parto e, além de não ligar para sua primogênita, que fica aos cuidados de Aibee, acabou engravidando de novo e faz de tudo para ser aceita em seu deturpado grupinho de amigas. Partindo de outra perspectiva, seguimos a história de Minny (Octavia Spencer), cuidadora oficial de uma velha senhora que é obrigatoriamente acolhida pela filha, Hilly (Bryce Dallas Howard), presidente de uma espécie de comitê caucasiano que repete inúmeras falácias para manter a segregação racial viva.

Eventualmente, uma terceira figura chega à cidade, representada pela aspirante à escritora Skeeter (Emma Stone), retornando para casa após se formar na faculdade e reencontrando-se com suas “amigas”. Após passar vários anos longe, percebe que o mundo que havia deixado para trás é um reflexo de tudo o que repudia, desde mentiras até a questão do racismo. Ela já não consegue manter relações com a mãe doente (encarnada pela incrível Allison Janney), nem corroborar com os ataques constantes de Hilly ou Elizabeth. Em diversos momentos, Skeeter lança alguns comentários irônicos, mas logo é repreendida por uma maioria preconceituosa e cuja mentalidade é praticamente medieval.

Não é surpresa que, após a apresentação desse “mundo comum”, as coisas venham a mudar. Parece compulsório que essa mudança seja chamada, mas Taylor faz questão de que tudo se mova com fluidez e naturalidade, ainda que peque em um excessivo melodrama aqui ou ali: Skeeter desenvolve um plano para expor a cidade e, ao mesmo tempo, conseguir alavancar sua carreira como literária. Após várias tentativas sutis de se aproximar das empregadas e de acontecimentos tristes e angustiantes, Aibee e Milly cedem aos pedidos da jornalista e resolvem prestar depoimentos explanando a vida de uma serviçal negra numa sociedade branca. Aqui, o filme faz questão de mostrar a perspectiva das minorias, sem apelar por discursos prontos: Davis e Spencer não apenas fazem um incrível trabalho, como criam mágica em todos as sequências em que contracenam. As atrizes exploram âmbitos de sua versatilidade artística que oscilam do trágico ao cômico, numa coesão de tirar o fôlego e que certamente representa um dos ápices de toda a obra.

E é claro que não podemos tirar mérito do restante do elenco. Stone faz um ótimo trabalho como a ingênua-porém-corajosa Skeeter, ainda que ceda a alguns clichês esperados, principalmente quando descobre que sua mãe teve atitudes idióticas e demitiu sem mais nem menos sua ex-ama-de-leite Constantine (Cicely Tyson) – quem realmente a criou. De outro lado, é inegável dizer que amamos odiar a simples presença de Howard: sua personagem é tão mesquinha e nojenta que chega a ser torturante olhá-la por mais de cinco segundos, e a atriz entrega-se de forma completa ao papel. Sua personalidade retrógrada vai de encontro a de outra personagem, Celia (Jessica Chastain), uma mulher feliz e otimista ao extremo que não compreende o que ocorre à sua volta e encara a relação entre negros e brancos com a maior naturalidade possível.

Os inúmeros jogos e embates conflituosos dão mais mobilidade à história e convergem em um ápice dramático muito interessante que não se arrasta e deixa a resolução em uma abertura aceitável. O diretor pode até não inovar muito na direção, mantendo-se em sua zona de conforto, mas cria atmosferas críveis o suficiente para nos manter envolvidos – e até mesmo quando brinca apenas com o campo-contracampo, abre espaço para esculpir diálogos e arrancar performances emocionantes, principalmente da dupla Davis-Spencer, ambas merecendo sem sombra de dúvida as duas indicações ao Oscar.

Um dos pontos a serem mencionados aqui, em relação à questão estética, é a incrível paleta de cor: o longa tem como tema-base a mudança através da palavra e dos escritos, provindos daqueles que menos esperamos (no caso, Aibee é real responsável pelo livro, o qual foi apenas viabilizado por Skeeter). Em colaboração a Taylor, o diretor de arte Curt Beech opta com magnífica maestria a utilização de colorações amareladas que se tornam cada vez mais fortes e saturadas conforme nos aproximamos da conclusão: a princípio, as cores monocromáticas e pastéis mesclam-se a uma fotografia apagada, apenas para darem lugar a uma iluminação bem mais concreta e presente que ressalta o amarelo e, consequentemente, a irreversibilidade dos acontecimentos.

The Help (2011)
L-R Octavia Spencer and Viola Davis

Histórias Cruzadas pode até parecer pueril quando olhamos pela superfície, mas traz uma carga crítica e catártica muito maior do que lhe damos crédito. Mesmo com os deslizes óbvios e as inúmeras controvérsias que geraram discussão nos anos seguintes, o resultado cinematográfico é bem positivo ao se configurar como uma sólida peça da sétima arte.

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