terça-feira , 19 novembro , 2024

Dica de Filme | ‘Sicário: Dia do Soldado’, a subestimada sequência estrelada por Benicio del Toro

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Se há um gênero narrativo que já deu o que tinha que dar, este gênero é o de guerra. Desde os primórdios do cinema até os dias atuais, tais temas foram transcritos de uma bruta realidade para a romantização cênica de diversos modos – e não é nenhuma surpresa que, em grande parte deles, haja o saturado maniqueísmo entre o terrorista e o homem branco, aquele que preza pelo caos e o que preza pela salvação e segurança de seu povo. De qualquer modo, sabemos que o buraco é bem mais embaixo e que valer-se desses extremismos é cair em falácias passíveis de reputação. É claro que, com a exploração subversiva dessa subvertente narrativa, obras-primas como ‘Guerra ao Terror’ e ‘Sniper Americano’ encontraram um espaço diferenciado para se sobreporem com suas perspectivas originais – e até mesmo ‘Argo’ provou ser capaz de expandir uma visão padronizada do mundo.

Em 2015, Denis Villeneuve chegava para seu público com ‘Sicário: Terra de Ninguém’, prezando pela visceralidade dos combates fronteiriços entre a inteligência dos Estados Unidos e o interminável tráfico de drogas ocorrido na divisa entre os territórios mexicanos e o estado do Texas. Causando um fervor interessante, a narrativa esfriou conforme planos para uma sequência eram idealizados pelos estúdios, o que nos deixou com pé atrás acerca do que viria: será que lidaríamos com mais uma história clichê e previsível? Ou será que o diretor Stefano Sollima, substituindo Villeneuve, conseguiria se render ao inesperado?



Felizmente, ‘Sicário: Dia do Soldado’ emergiu como uma das grandes surpresas de 2018, em meio a alguns fracassos de crítica e de bilheteria que decepcionaram parcelas significativas do público, ainda mais se considerarmos o apreço por um bom drama de guerra. Nessa mais nova iteração, o famigerado gore e sanguinolência dá lugar para o estruturado roteiro de Taylor Sheridan, retornando como autor da história e compensando alguns elementos convencionais que não poderiam faltar em um cosmos tão trágico quanto este – isso sem comentar a respeito de um brilhante elenco que exala uma química pura. E já por aqui vos digo que não a compreensão deste longa-metragem não se resume a apenas à primeira meia hora ou ao seu resumo, mas sim às delineações e às entrelinhas que ganham força a partir da metade, com viradas surpreendentes e extremamente ácidas – ainda mais dentro dos conflitos ideológicos pelos quais nossa sociedade passa.

A narrativa já se inicia perscrutada pela trilha da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir, a qual emula graciosamente a tensa e angustiante atmosfera arquitetada pelo falecido Jóhann Jóhannsson na iteração predecessora. A batida ritmada dos bumbos e dos tambores atua em contraste significativo com sons quase animalescos e tonais que têm como principal função colocar o público em um eterno ciclo vicioso: toda a estrutura sonora segue um padrão repetitivo e inquebrantável, que emerge sem aviso em diversas sequências, como indicador de que o que vemos é uma parcela da vida real que acontece diariamente. E não é à toa que as duas primeiras sequências fílmicas já coloquem o espectador na ponta da poltrona, nos instigando a um misto de repulsa e comoção generalizadas.

Josh Brolin e Benicio Del Toro retornam para os respectivos papéis do oficial da CIA Matt Graver e seu parceiro advogado e assassino Alejandro Gillick. Brolin é retirado de sua missão na Somália, dentro da qual investigava a passagem de terroristas supostamente da organização ISIS para dentro do território estadunidense através do México, e retorna para a terra natal, requisitado em primeira mão pelo secretário de defesa para arquitetar um plano de combate aos cartéis de drogas. A priori, podemos imaginar que a missão será como qualquer outra: invadir e limpar, deixando para trás um rastro de destruição como forma de mostrar o poderio militar dos EUA. Entretanto, o buraco é muito mais embaixo, e a ideia é forjar um falso sequestro para colocar as duas gangues principais em guerra (em outras palavras, acender o pavio de um barril de pólvora prestes a explodir).

Assistir ao conflito de camarote é uma ideia perigosa e já começa a quebrar a visão idealizada que o mundo tem dos soldados americanos: Sheridan, através de diálogos complexos e cruéis, mostra os dois lados de uma mesma moeda, seja dos agentes, seja dos traficantes, fornecendo uma complexidade que não é vista com frequência pelos blockbusters hollywoodianos – o que provavelmente já deixará uma parte considerável do público de queixo caído pela explícita ousadia. O roteiro também acerta em cheio ao trazer uma verdade inquestionável do que enxergamos apenas através da mídia, principalmente permitindo a insurgência de dois rostos jovens: a filha de um dos chefes dos cartéis, Isabel (Isabela Merced), e um adolescente latino que passa a trabalhar como guia entre a fronteira México-EUA, Miguel (Elijah Rodriguez).

Assim como o elenco mais velho, os novatos rendem-se de modo abrupto a seus papéis e chegam a assustar pela coerência e pela crueza de suas personalidades mutáveis. Seus arcos, assim como os de Matt e Alejandro, começam em uma linearidade que parece não chegar a nenhum lugar, mas que logo tomam rumos inesperados em tours-de-force compulsórios e que nos deixam sem palavras. Tais acontecimentos inclusive são reafirmados com os dois atos finais, que são pautados tanto pela ação propositalmente excessiva quanto pelo obrigatório melodrama resolutivo que deixa espaço para outras possíveis continuações – que espero, do fundo do coração, que sejam tão boas quanto.

Ainda que a fotografia de Dariusz Wolski siga uma padronização clássica do gênero – a presença de construções cênicas tomadas pela poeira e pela névoa, e o uso de uma iluminação difusa que aumenta o perigo atmosférico e que tem como função prender a atenção da audiência -, ela funciona dentro de seus convencionalismos. Os arranjos de enquadramento ainda ousam um pouco mais, buscando referências teatrais para respaldá-los e sendo ajudados por uma incrível paleta de cores que consegue ao mesmo tempo separar e unir cosmos tão diferentes quanto os que nos são apresentados.

A inteligência da narrativa é tamanha, que a chegada do segundo ato vem com força total e não vê quaisquer limites. As revelações feitas pela correspondente da Inteligência Homeland, Cynthia Foards (Catherine Keener) são imprescindíveis para compreendermos que os ideais seguidos pelos inúmeros personagens na verdade não passam de mentiras muito bem arquitetadas e de uma ideologia unidimensional que não enxerga além do próprio umbigo. Isso não apenas vai contra toda o escopo nacionalista defendido por cineastas americanos e obras-primas do gênero de drama bélico, como também critica uma perspectiva heroica que na verdade se mostra tão ou mais cruel daqueles que enxergamos como inimigos ou terroristas. Em diversas ocasiões, o filme nos coloca em posição reflexiva, levando-nos a imaginar quem realmente são os mocinhos e os vilões da história.

‘Sicário: Dia do Soldado’ definitivamente é uma obra incompreendida. À época de seu lançamento, uns gostaram pela quantidade de ação, enquanto outros odiaram pelo mesmo motivo; entretanto, enxergar nas entrelinhas é justamente o que o torna mais profundo do que aparenta ser – e dizer que a narrativa se perde pela falta de ambição não apenas é um triste equívoco, mas uma ofensa ao que ele realmente representa.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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Em 2015, Denis Villeneuve chegava para seu público com ‘Sicário: Terra de Ninguém’, prezando pela visceralidade dos combates fronteiriços entre a inteligência dos Estados Unidos e o interminável tráfico de drogas ocorrido na divisa entre os territórios mexicanos e o estado do Texas. Causando um fervor interessante, a narrativa esfriou conforme planos para uma sequência eram idealizados pelos estúdios, o que nos deixou com pé atrás acerca do que viria: será que lidaríamos com mais uma história clichê e previsível? Ou será que o diretor Stefano Sollima, substituindo Villeneuve, conseguiria se render ao inesperado?

Felizmente, ‘Sicário: Dia do Soldado’ emergiu como uma das grandes surpresas de 2018, em meio a alguns fracassos de crítica e de bilheteria que decepcionaram parcelas significativas do público, ainda mais se considerarmos o apreço por um bom drama de guerra. Nessa mais nova iteração, o famigerado gore e sanguinolência dá lugar para o estruturado roteiro de Taylor Sheridan, retornando como autor da história e compensando alguns elementos convencionais que não poderiam faltar em um cosmos tão trágico quanto este – isso sem comentar a respeito de um brilhante elenco que exala uma química pura. E já por aqui vos digo que não a compreensão deste longa-metragem não se resume a apenas à primeira meia hora ou ao seu resumo, mas sim às delineações e às entrelinhas que ganham força a partir da metade, com viradas surpreendentes e extremamente ácidas – ainda mais dentro dos conflitos ideológicos pelos quais nossa sociedade passa.

A narrativa já se inicia perscrutada pela trilha da compositora islandesa Hildur Guðnadóttir, a qual emula graciosamente a tensa e angustiante atmosfera arquitetada pelo falecido Jóhann Jóhannsson na iteração predecessora. A batida ritmada dos bumbos e dos tambores atua em contraste significativo com sons quase animalescos e tonais que têm como principal função colocar o público em um eterno ciclo vicioso: toda a estrutura sonora segue um padrão repetitivo e inquebrantável, que emerge sem aviso em diversas sequências, como indicador de que o que vemos é uma parcela da vida real que acontece diariamente. E não é à toa que as duas primeiras sequências fílmicas já coloquem o espectador na ponta da poltrona, nos instigando a um misto de repulsa e comoção generalizadas.

Josh Brolin e Benicio Del Toro retornam para os respectivos papéis do oficial da CIA Matt Graver e seu parceiro advogado e assassino Alejandro Gillick. Brolin é retirado de sua missão na Somália, dentro da qual investigava a passagem de terroristas supostamente da organização ISIS para dentro do território estadunidense através do México, e retorna para a terra natal, requisitado em primeira mão pelo secretário de defesa para arquitetar um plano de combate aos cartéis de drogas. A priori, podemos imaginar que a missão será como qualquer outra: invadir e limpar, deixando para trás um rastro de destruição como forma de mostrar o poderio militar dos EUA. Entretanto, o buraco é muito mais embaixo, e a ideia é forjar um falso sequestro para colocar as duas gangues principais em guerra (em outras palavras, acender o pavio de um barril de pólvora prestes a explodir).

Assistir ao conflito de camarote é uma ideia perigosa e já começa a quebrar a visão idealizada que o mundo tem dos soldados americanos: Sheridan, através de diálogos complexos e cruéis, mostra os dois lados de uma mesma moeda, seja dos agentes, seja dos traficantes, fornecendo uma complexidade que não é vista com frequência pelos blockbusters hollywoodianos – o que provavelmente já deixará uma parte considerável do público de queixo caído pela explícita ousadia. O roteiro também acerta em cheio ao trazer uma verdade inquestionável do que enxergamos apenas através da mídia, principalmente permitindo a insurgência de dois rostos jovens: a filha de um dos chefes dos cartéis, Isabel (Isabela Merced), e um adolescente latino que passa a trabalhar como guia entre a fronteira México-EUA, Miguel (Elijah Rodriguez).

Assim como o elenco mais velho, os novatos rendem-se de modo abrupto a seus papéis e chegam a assustar pela coerência e pela crueza de suas personalidades mutáveis. Seus arcos, assim como os de Matt e Alejandro, começam em uma linearidade que parece não chegar a nenhum lugar, mas que logo tomam rumos inesperados em tours-de-force compulsórios e que nos deixam sem palavras. Tais acontecimentos inclusive são reafirmados com os dois atos finais, que são pautados tanto pela ação propositalmente excessiva quanto pelo obrigatório melodrama resolutivo que deixa espaço para outras possíveis continuações – que espero, do fundo do coração, que sejam tão boas quanto.

Ainda que a fotografia de Dariusz Wolski siga uma padronização clássica do gênero – a presença de construções cênicas tomadas pela poeira e pela névoa, e o uso de uma iluminação difusa que aumenta o perigo atmosférico e que tem como função prender a atenção da audiência -, ela funciona dentro de seus convencionalismos. Os arranjos de enquadramento ainda ousam um pouco mais, buscando referências teatrais para respaldá-los e sendo ajudados por uma incrível paleta de cores que consegue ao mesmo tempo separar e unir cosmos tão diferentes quanto os que nos são apresentados.

A inteligência da narrativa é tamanha, que a chegada do segundo ato vem com força total e não vê quaisquer limites. As revelações feitas pela correspondente da Inteligência Homeland, Cynthia Foards (Catherine Keener) são imprescindíveis para compreendermos que os ideais seguidos pelos inúmeros personagens na verdade não passam de mentiras muito bem arquitetadas e de uma ideologia unidimensional que não enxerga além do próprio umbigo. Isso não apenas vai contra toda o escopo nacionalista defendido por cineastas americanos e obras-primas do gênero de drama bélico, como também critica uma perspectiva heroica que na verdade se mostra tão ou mais cruel daqueles que enxergamos como inimigos ou terroristas. Em diversas ocasiões, o filme nos coloca em posição reflexiva, levando-nos a imaginar quem realmente são os mocinhos e os vilões da história.

‘Sicário: Dia do Soldado’ definitivamente é uma obra incompreendida. À época de seu lançamento, uns gostaram pela quantidade de ação, enquanto outros odiaram pelo mesmo motivo; entretanto, enxergar nas entrelinhas é justamente o que o torna mais profundo do que aparenta ser – e dizer que a narrativa se perde pela falta de ambição não apenas é um triste equívoco, mas uma ofensa ao que ele realmente representa.

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Thiago Nollahttps://www.editoraviseu.com.br/a-pedra-negra-prod.html
Em contato com as artes em geral desde muito cedo, Thiago Nolla é jornalista, escritor e drag queen nas horas vagas. Trabalha com cultura pop desde 2015 e é uma enciclopédia ambulante sobre divas pop (principalmente sobre suas musas, Lady Gaga e Beyoncé). Ele também é apaixonado por vinho, literatura e jogar conversa fora.

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