Harlan Coben é um dos autores mais celebrados e bem-sucedidos da contemporaneidade, responsável por assinar obras como ‘Até o Fim’ e ‘Silêncio na Floresta’, por exemplo. Não é surpresa que inúmeros de seus romances já tenham sido adaptados para o cinema e para a televisão – e, recentemente, o Prime Video lançou uma ótima adaptação intitulada ‘Shelter’, baseada no livro ‘Refúgio’.
Diferente da maioria das incursões literárias de Coben, a narrativa é um mergulho profundo e impactante no mundo jovem-adulto e acompanha o jovem Mickey Bolitar (Jaden Michael), um rapaz que passa por uma grande tragédia ao perder o pai em um acidente de carro e ver sua mãe ser internada para tratar de uma depressão que quase tirou sua vida. Após se mudar para Kesselton, em Nova Jersey, ele passa a morar com a tia, Shira (Constance Zimmer) – apenas para descobrir que a normalidade estaria muito fora de seu alcance em virtude da fama de seus pais atletas que se tornaram mundialmente famosos. Lidando com um apreço público que mais funciona como uma faca de dois gumes, ele se envolve em uma artimanha inexplicável quando uma de suas novas amigas e possível par romântico, Ashley (Samantha Bugliaro), desaparece sem deixar rastros.
Não demora muito até que Mickey una forças a Colherada (Adrian Greensmith) e a Ema (Abby Corrigan), outros amigos que se tornam fortes aliados em sua empreitada para encontrar Ashley, e descobrem um intrincado enredo cujos segredos envolvem a própria família do protagonista e os traumas carregados pelo garoto por tanto tempo – uma conspiração que envolve vingança, resgate de crianças que sofrem abusos físicos, psicológicos e sexuais de seus guardiões e antagonistas perigosos que aliciam adolescentes para serem vendidas a pedófilos. E, ao longo de oito episódios, a temporada de estreia é uma das melhores entradas do ano e, com certeza, deve ter passado longe de seu radar.
Mas por que a produção funciona?
A princípio, temos um competente elenco jovem que rouba nossa atenção sequência após sequência: Michael, que já trabalhou na ótima série ‘Colin em Preto e Branco’, apresenta um novo lado performático ao construir um personagem com “complexo de herói” – visto que ele se culpa por não ter conseguido salvar o pai ou a mãe e, agora, Ashley (que ele jura encontrar, nem que seja a última coisa que faça; Greensmith emerge no papel de Colherada para quebrar estereótipos constantes em histórias ambientadas em colégio, posando como um nerd que não tem medo de falar o que pensa e que defende seus amigos com unhas e dentes; e Corrigan, ao interpretar Ema, nos encanta por uma naturalidade crua e por uma sofisticação performática que nos envolve do começo ao fim.
O elenco adulto serve como um ótimo contraponto geracional e apenas alimenta o instigante suspense que se apodera da adaptação: temos Constance Zimmer interpretando Shira, a tia de Mickey que o vê como um filho, ainda que acredite não ter aptidão para a maternidade, e que tenta se aproximar do menino para honrar a memória do irmão; Missi Pyle como Hannah Taylor, mãe do arqui-inimigo de Mickey, Troy (Brian Altemus), e que ainda está apaixonada por Shira desde a época da escola; e Tovah Feldshuh como a Dona Morcego, uma sinistra idosa que se transformou em uma entidade mitológica e que esconde suas verdadeiras intenções do mundo para que seu plano continue a funcionar.
Um dos outros aspectos que chamam a atenção é o ativo envolvimento de Harlan e de sua filha, Charlotte Coben, na construção da série. É notável como a parceria da dupla é sólida o bastante para abrir espaço a inúmeras subtramas que não são apenas jogadas, mas são mencionadas de forma aparentemente fragmentada apenas para convergirem em uma grande explosão épica que nos arranca suspiros de admiração e de consternação: temos os problemas pessoais de cada personagem; a morte do pai de Mickey, que na verdade pode ter sido apenas forjada; o rapto de crianças e adolescentes que acontecem não apenas na cidade, mas mundo afora – e que envolve uma sociedade secreta de proteção a esses jovens que é ameaçada por forças malignas.
A condução cênica e a montagem são pontos imprescindíveis para que um enredo de tamanho calibre funcione e desvie, em boa parte, das fórmulas do gênero. Afinal, como bem sabemos, projetos desse tipo costumam pender para uma amálgama cansativa de explicações ocasionais e sem sentido – o que não acontece em virtude das habilidosas mãos de Harlan e Charlotte. E, através da edição que procura priorizar cada personagem, seja protagonista ou coadjuvante, conseguimos compreender a magnitude do que está por vir e abraçar um final que, apesar de previsível, dá muitas margens para uma segunda temporada que pode repetir o sucesso da primeira.
Lembrando que ‘Shelter’ está disponível no catálogo do Prime Video.