Longa carrega uma das histórias de produção mais conturbadas do cinema
Com sua imensa variedade de produções, a Netflix é como uma infindável biblioteca (ou locadora) no qual é muito fácil deixar certos títulos passarem despercebidos. Como em qualquer estabelecimento do tipo, os exemplares de maior nome costumam ficar à vista do visitante mais claramente do que qualquer outra coisa e no caso da Netflix esse exemplo se torna mais enfático devido à existência do algoritmo que mapeia a preferência do usuário com base no que ele consome, apresentando assim exemplares que são considerados mais apropriados para ele e consequentemente ocultando tantos outros que não se encaixam.
Um desses títulos, sem dúvida, é O Outro Lado do Vento: também conhecida como a última obra de Orson Welles. O mockumentário (falso documentário) do famoso cineasta teve uma produção extremamente complicada, marcada por processos judiciais, gravações que levaram anos para serem concluídas e escassez de recursos financeiros.
Desde o início Welles lidou com o projeto como uma obra independente, no qual não só marcaria seu retorno às boas graças de Hollywood (conforme ele acreditava) como também seria um filme no qual ele teria o controle total de tudo que aconteceria; essa seria uma situação oposta ao que lhe ocorreu enquanto produzia sua obra mais famosa, Cidadão Kane, onde o estúdio mantinha o diretor sob controle e era detentor da palavra final.
O momento em que a ideia do filme foi concebida também é muito importante, ainda mais que pela duração do desenvolvimento ela se traduz de 1970 até 2018. Quando Welles anunciou que estava desenvolvendo seu próximo filme ele já era um cineasta “exilado” na Europa e no período entre 1948 e 1956 suas produções basicamente se concentraram por lá, tais como Othello (1948) e The Immortal Story (1968).
Toda a premissa de O Outro Lado do Vento se concentra no último dia de vida de um premiado diretor chamado Jake Hannaford que, incapaz de se adaptar às mudanças pelas quais o cinema passava principalmente com o movimento da Nova Hollywood, decide apostar na produção de uma última obra que conteria todos os elementos que estavam populares na época por filmes como Bonnie e Clyde e A Última Noite de um Homem, sendo eles sexo e violência explícita.
Dessa forma, com o filme ainda inacabado, Hannaford promove uma festa em sua casa convidando críticos e associados de longa data para exibir o que já havia do material. Ao mesmo tempo em que é desenvolvida essa linha narrativa, vai se mesclando a ela cenas do filme que está sendo exibido na festa; apresentando um casal de protagonistas que jamais falam e envolvidos em várias cenas explicitamente eróticas. Por se tratar de uma obra não finalizada, esse filme secundário não mostra qualquer linha narrativa clara que o espectador possa seguir para entender o que está acontecendo, nem mesmo os personagens da festa ou envolvidos na produção são capazes de entender o que está sendo mostrado.
De qualquer forma, Welles monta sua trama principal com um trabalho de câmera propositalmente caótico em meio às várias pessoas presentes na festa e invasivo no que consta aos constantes close-ups sobre o diretor protagonista. Narrativamente o filme não segue uma estrutura que simula fielmente a fórmula de um documentário mas a câmera tem uma presença bem fluída pelo cenário, focando pontualmente em vários convidados interagindo em cômodos diferentes. De vez em quando rendendo comentários direcionados do personagem em observação sobre o que quer que esteja acontecendo.
Durante uma conversa com Peter Bogdanovich, que também foi parte do elenco, Welles indicou como seria a estrutura de condução da trama. “Eu vou usar várias vozes para contar a história. Você escuta conversas gravadas como entrevistas e você vê algumas cenas diferentes acontecendo ao mesmo tempo”.
O enredo também é considerado uma metáfora aberta sobre o processo de envelhecimento de um artista, variando em termos de associação do protagonista com o autor Ernest Hemingway, essa defendida pelo próprio Orson Welles que o conheceu na década de 30, até possivelmente com Alfred Hitchcock que outrora já havia sido uma unanimidade na indústria mas que na fase final da carreira enfrentou grande dificuldade de se adaptar aos novos tempos, entregando dessa forma trabalhos considerados medíocres como Topázio e Cortina Rasgada.
Porém, a comparação mais imediata e talvez célebre acabe sendo com a mente por trás do filme. Nas ocasiões em que foi questionado se o protagonista interpretado por John Huston (outro célebre nome no panteão de cineastas de Hollywood) era uma representação da sua persona, Orson Welles foi direto ao negar e jogar a especulação para o colo de Hemingway. No entanto, é fácil tender a comparar O Outro Lado do Vento como uma representação satírica da trajetória profissional do próprio Orson Welles.
Antes considerado um prodígio do cinema pelo feito alcançado com Cidadão Kane e até mesmo um comunicador diferenciado por um dos primeiros mockumentários da história que foi sua transmissão radiofônica de Guerra dos Mundos em 1938, ele viu gradativamente os estúdios lhe dando as costas e com crescente dificuldade de financiamento dos seus projetos ele se voltou para o mercado europeu de cinema independente que foi ganhando amadurecimento a partir dos anos 50.
É justamente esse histórico complicado relacionado ao financiamento que Welles postergou por décadas a finalização de O Outro Lado do Vento. Inicialmente ele teve como principal investidor Mehdi Boushehri, cunhado do então Xá do Irã Reza Pahlavi. No entanto, após a deposição do Xá na Revolução Iraniana de 1979 o filme foi mantido em um cofre na França, primeiramente pelo novo regime do país e depois pela produtora francesa do cunhado do Xá.
Welles então iniciou uma batalha judicial para recuperar os direitos sobre os negativos; conforme é visto no documentário Serei Amado Quando Morrer, o cineasta apelou para o antigo código napoleônico relacionado à propriedade intelectual, mas a decisão da corte francesa manteve os direitos com o produtor.
Quando chegou o ano de 1985, Orson Welles faleceu sem jamais ter finalizado a edição de seu último filme. Ainda assim, seus associados e parentes continuaram o esforço de arrecadar recursos para terminar a produção o mais próximo possível de como o diretor sonhara em realizar. Por volta de 1998, Mehdi Boushehri decidiu por negociar os direitos sobre o filme, a fim de facilitar que ele fosse lançado e assim pudesse recuperar um pouco do investimento.
Poucos anos depois, Bogdanovich anuncia que vai buscar parceiros para terminar a pós-produção de O Outro Lado do Vento em um esforço que perdurou até 2018, quando a versão finalizada foi exibida no Festival de Veneza e no final do ano entrou no catálogo da Netflix.
Ao final dessa saga, fica muito difícil não confundir o filme com a carreira de Welles. Um conceito que originalmente poderia ser o renascimento de um cineasta\um cineasta que no início da carreira apresentou conceitos que poderiam mudar o cinema, uma história sobre um diretor outrora grande que se tornou uma sombra reciclada de si mesmo\ um realizador que já foi considerado um prodígio de Hollywood por ter criado o maior filme de todos os tempos e nos estágios finais da vida precisava financiar os próprios projetos.
Tudo em O Outro Lado do Vento exala a exaustão, no bom sentido, do seu criador, o cansaço que transparece no Jake Hannaford de John Huston exibe bem isso; as câmeras invasivas que tomam a festa na casa do cineasta, como abutres em volta do corpo já deteriorado do protagonista, são as mesmas que muito se fartaram em mostrar Orson nos estágios finais da vida e ainda assim cabe a ironia de algumas delas serem de cineastas realizando gravações sobre o projeto de Hannaford; outrora o manipulador das câmeras, é Hannaford\Welles quem por elas agora era vitimizado.