Entre os séculos XVII e XX, existiu um grupo de mulheres guerreiras no Reino de Daomé, no continente africano (hoje conhecido como Benim). Tais guerreiras eram conhecidas como Agojie, ou, como foram apelidadas pelos brancos europeus, Amazonas de Daomé, em virtude de suas similaridades com as amazonas que povoaram a mitologia greco-romana por tantos anos. Responsáveis por compor boa parte do exército do reino, as Agojie eram lutadoras poderosas – uma formação feminina e incomum para a época, mas que foram recrutadas pelo rei em virtude da forte baixa de guerreiros homens nas múltiplas batalhas enfrentadas. Agora, a história dessas incríveis mulheres chega ao catálogo da Netflix com o épico de ação ‘A Mulher Rei’.
O longa-metragem, comandado por Gina Prince-Bythewood (‘The Old Guard’) é uma celebração da cultura africana e, além de seu caráter esplendoroso, ajuda a desmistificar os estereótipos perpetuados pela visão segregada dos europeus – que, como bem sabemos, enxergavam a África como um grandioso mercado de escravos e nem ao menos tratavam suas populações como pessoas. A diretora, dessa maneira, consegue capturar cada um dos elementos com respeito máximo, promovendo uma exaltação da pluralidade cultural e escalando um elenco estelar que brilha do começo ao fim da produção. E o mesmo pode ser dito do roteiro assinado por Dana Stevens, que, aliando-se a Maria Bello para desenvolver a trama, faz questão de trazer as clássicas referências da jornada do herói para recriar essas mulheres que não têm o devido reconhecimento nos nossos estudos.
A trama é centrada em Nanisca (Viola Davis), uma general que fica responsável pelo treinamento das Agojie e que é a peça principal do iminente conflito entre os Fons, povo que habita Daomé, e a comunidade inimiga conhecida como Oyó, que os vem subjugando há décadas. Depois de serem ameaçados pelo perigoso e mortal Oba Ade (Jimmy Odukoya), que nutre de um terrível passado com a protagonista, cabe a Nanisca defender seu povo e livrá-los das correntes de uma exploração interminável – que inclusive coloca em risco a vida de suas meninas e o poder do Rei Ghezo (John Boyega). E é nessa necessidade de fortalecimento que entra Nawi (Thuso Mbedu), uma jovem rebelde que recusa a se casar e é entregue ao Rei para que seja treinada como uma Agojie – algo que lhe vem a calhar muito bem, considerando que ela, por fim, encontra quem é de verdade.
Dizer que Davis faz um trabalho espetacular é cair na redundância; afinal, a atriz, que venceu o Oscar por sua performance irretocável em ‘Um Limite Entre Nós’, é considerada uma das melhores de todos os tempos e consegue se metamorfosear como nenhuma outra. Em ‘A Mulher Rei’, isso não seria diferente – e sua própria escalação é motivo o suficiente para querermos ver a produção. Como bem sabemos, Hollywood não tem uma reputação boa em relação a atrizes mais velhas, mas isso não impediu que Prince-Bythewood e o time de produtores executivos contratasse Davis para um dos maiores papéis de sua carreira, permitindo que ela esmiuçasse lados ainda não vistos em sua carreira e comandando cada cena com imponência de tirar o fôlego. Desde o modo como encarna Nanisca até os olhares cândidos que lança ao final do filme são elementos que nos dão confiança que ninguém mais além dela poderia viver a General nas telonas.
Todavia, não é apenas Davis quem está primorosa: Mbedu utiliza os convencionalismos da supracitada jornada do herói para fugir das restrições irreverentes e arrogantes de Nawi e se tornar uma guerreira ímpar, não pensando duas vezes antes de defender suas irmãs e lutar contra aqueles que querem tirar sua recém-descoberta família. Lashana Lynch volta com força tremenda como Izogie, mentora de Nawi, desfrutando de uma química apaixonante com Mbedu; e Sheila Atim interpreta Amenza, braço-direito de Nanisca que não apenas a acompanha em todas as batalhas, mas aponta quando ela comete erros ou quando deixa as dúvidas tomarem conta dela. Atim e Davis, ambas com background considerável no teatro, até mesmo aproveitam o espaço para pincelar suas rendições com alguns detalhes sutis, mas que fazem toda a diferença em cena (como o timing impecável e o confronto de olhares).
A diretora também tem preocupação considerável em se livrar das fórmulas com que o continente africano foi retratado no cenário mainstream, recusando-se a usar os costumeiros e ofensivos filtros alaranjados e abrindo espaço para arquitetar cenários idílicos que refletem a fauna e a flora com respeito. E isso não seria possível sem a presença de Polly Morgan, cuja direção de fotografia é emocionante e instigante, e a trilha sonora de Terence Blanchard, cujo resgate dos estilos musicais da época é certeiro em boa parte do longa (mesmo que no final peque no excesso melodramático que poderia ser mais cauteloso).
Apesar de fabulosamente bem solidificado, a obra não é livre de falhas, como já falei no parágrafo anterior – e talvez o problema que mais apareça é a multiplicidade de tramas que, por vezes, são deixadas de lado. Além da presença desnecessária de dois europeus (cujo sotaque forçado também não os ajuda a personificar os personagens), temos Ode (Adrienne Warren), uma das mulheres do reino vizinho que é capturada pelas Agojie e que se torna uma delas (“aqui eu vou ser a caçadora, não a caça”, ela diz em certo momento). Ode é olhada com certa esnobação pelas outras guerreiras, mas prova seu valor; porém, visto que esse arco não é perscrutado como deveria, ficamos com uma sensação de incompletude que é resolvida com um triste adeus.
Mesmo com deslizes eventuais, ‘A Mulher Rei’ é um majestoso espetáculo que cumpre com o que promete, nos avivando e nos comovendo com uma potente narrativa que precisa ser vista na maior das telas. Não lidamos apenas com a recontagem de uma história necessária, mas uma recriação que, à medida que se vale de uma nostalgia muito bem-vinda, é original, encantadora e aplaudível em sua totalidade.