Releitura da lenda do Rei Arthur é uma das mais icônicas no cinema
De uma forma ou de outra grandes nomes da literatura não deixam de ser verdadeiramente adaptados para o cinema. Sherlock Holmes tem recebido uma certa atenção da Netflix em tempos recentes, Robin Hood teve uma versão dirigida por Ridley Scott há alguns anos e um reboot mais recentemente. Já o lendário Rei Arthur é mais inconstante.
Sua última aventura nos cinemas foi na grande produção de Guy Ritchie, a A Lenda da Espada, que não rendeu o retorno de bilheteria esperado para garantir uma sequência. Por outro lado, indo para o campo das produções serializadas, a Netflix lançou em 2020 a série Cursed – A Lenda do Lago que mesmo tendo como ambientação o cenário arturiano teve o protagonismo recaindo sobre Nimue, a misteriosa Dama do Lago que entrega Excalibur à Arthur. A resposta mista do público dificultou a confirmação de uma segunda temporada.
Quando se volta alguns anos mais para o passado é possível notar que a mitologia do rei bretão teve uma variedade considerável de abordagens que vez ou outra tentavam fugir do imaginário padrão envolvendo a espada na pedra. Exemplos são os filmes de 1995 (Lancelot, o Primeiro Cavaleiro) que escanteia o Rei para focar no romance proibido da rainha Guinevere com Lancelot, a animação da Disney de 1963 (A Espada era a Lei) que adaptou o romance O Único e Eterno Rei de T.H. White e a lendária paródia do grupo Monty Python Em Busca do Cálice Sagrado.
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Ainda assim, até 1981 poucas foram as obras que realmente se debruçaram sobre uma abordagem mais profunda, não só dos elementos fantásticos mas também dos indivíduos que a compõem. É válido citar Camelot de 1967, a mega produção que transpôs para o cinema o sucesso homônimo da Broadway sobre a ascensão e queda de Arthur. Excalibur, enquanto projeto, nasceu de uma reformulação.
O diretor e roteirista John Boorman tinha de início um plano: realizar uma obra pregressa sobre a vida do mago Merlin. No entanto, ele não conseguiu financiamento para o projeto e em contrapartida lhe foi oferecida a possibilidade de adaptar O Senhor dos Anéis pela United Artists. Um roteiro para o filme da obra de Tolkien chegou a ser escrito por Boorman e Rospo Pallenberg durante o período de seis meses.
A questão é que a United Artists enfrentou uma séria crise financeira nesse meio tempo e para executar a tão sonhada adaptação de Senhor dos Anéis eles recorreram ao animador Ralph Bakshi que viria a lançar a animação das aventuras de Frodo em 1978. A United Artists então comprou o roteiro de Boorman por US$ 3 milhões, concedendo a possibilidade do cineasta produzir sua visão da lenda arthuriana.
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Mesmo assim, a obra de Tolkien ainda mantinha forte influência no diretor que também desejava casar a fantasia com a realidade, conforme pode ser observado em uma entrevista concedida por ele à Harlan Kennedy em 1981. “O que eu estou fazendo é estabelecer um mundo, um período da imaginação. Eu estou tentando sugerir uma espécie de Terra-Média, nos termos de Tolkien. É um mundo contagioso; é como o nosso mas diferente.”
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Desde o princípio, Boorman tinha uma visão bem direta do que ele queria; conceder à lenda de Arthur um tom bastante exclamativo, quase uma ópera, de modo a ressaltar a grandeza da história sendo contada. Estruturalmente o filme corrobora essa visão ao ser dividido em atos: um primeiro sendo a idade das trevas pré-nascimento de Arthur e focando em seu pai, Uther, enquanto que o reino sangra com guerras e a ausência de um líder; um segundo que começa com a construção de Camelot e estabelece a ascensão de Arthur ao poder bem como a criação da Távola Redonda; e o ato final mostrando um Rei debilitado que se torna obsessivo pelo Santo Graal e a ameaça de conquista de seu filho ilegítimo Mordred.
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Outro elemento técnico que contribui para o tom operístico é a escolha do compositor Trevor Jones em utilizar a trilha de Richard Wagner, Marcha Funerária de Siegfried (que assim como o filme aborda a tragédia de uma paixão e como ela está ligada ao fim de uma utopia), e O Fortuna do também compositor Carl Orff. A fotografia conduzida por Alex Thomson também deixa sua marca, com a maior parte das locações tendo sido na Irlanda e principalmente em campos abertos; priorizando sempre que possível cores vivas no vestuário prata das armaduras ou verde esmeralda das magias de Merlin e Morgana.
Um tom de desfoque também é perceptível em certas situações resultando não apenas em um efeito que reforça o brilho dos metais mas também passa a aura de imaginário a obra, de um sonho. A condução de Alex Thomson então caminha para o clímax do embate entre Arthur e Mordred que forma um cenário com três cores únicas: dourado de Mordred, prata do Rei e vermelho de sangue. É uma construção visual que presta tributo verdadeiro à qualquer tragédia grega justamente por tudo que envolve o momento.
Excalibur não é uma unanimidade entre o público e crítica mas é inegável que é um filme com personalidade. Boorman apostou corretamente em impactar com som e imagem mas pecou na ambição do enredo, que cobre largos espaços da história de Thomas Mallory, A Morte de Artur, e dessa forma deixa a trama muito apressada e diversos personagens (além do relacionamento entre Lancelot e Guinevere) com a impressão de que não houve um trabalho real sobre ele.