Sensação no Festival de Veneza em agosto, Babygirl, da cineasta holandesa Halina Reijn, aborda de maneira provocativa temas como sexualidade, liderança e papeis de gênero. Num encontro de exibição do filme para os votantes do Globo de Ouro e Oscar no charmoso restaurante Silencio des Prés, em Paris, Halina compartilhou suas inspirações e desafios no processo criativo do suspense erótico, ganhador da Coppa Volpi de Melhor Atriz para Nicole Kidman. O jurado era presidido por Isabelle Huppert, uma das inspirações da cineasta. “A Professora de Piano [2001] é um dos meus filmes favoritos”, confidenciou.
Igualmente esperada para o coquetel após a exibição na emblemática sala Cinéma Étolie Saint-Germain-de-Prés no subsolo do restaurante gastronômico, Nicole Kidman não apareceu devido às condições meteorológicas; em pleno novembro, nevou em Paris e os termômetros chegaram a temperaturas negativas. Em gravação na Cidade Luz, a atriz australiana deixou a diretora de 49 anos ser protagonista da conversa sobre pudor, prazer e poder em conversas com os votantes.
A Lacuna do Orgasmo
Para a diretora e roteirista Halina Reijn, a sexualidade em Babygirl não é somente o tema central, mas uma metáfora para a busca da sua protagonista Romy (Nicole Kidman) pela liberdade de seus pensamentos reprimidos e traumas passados. Ela é CEO de uma empresa de tecnologia e envolve-se sexualmente com um dos estagiários de sua companhia, numa relação de controle e dominação.
“[Romy] é uma mulher em crise existencial, tentando se libertar das pressões que a aprisionam. Ela acredita que precisa ser perfeita: a mãe ideal, a esposa ideal, sem falhas ou feridas, porém isso a desconectou de seu ‘lado selvagem’”, explica Halima.
A partir dessa obra, a diretora busca abordar a complexidade do prazer feminino, um tema muitas vezes ignorado ou minimizado nos filmes do gênero suspense erótico. Halima destaca a “lacuna do orgasmo” — um fenômeno real e estatisticamente comprovado — como um ponto de partida para a história, já que está relacionada à primeira cena do filme de Romy durante uma transa com o seu marido (Antonio Banderas).
“Baseei-me em uma amiga que, por muito tempo, nunca havia experimentado um orgasmo durante a relação sexual com um homem. Ao investigar, percebi que isso é um problema maior do que parece“, revelou a artista.
Um Olhar Feminino para o Thriller Erótico
Desde os anos 1970, com a teoria do Male Gaze (Olhar Masculino), da crítica cultural Laura Mulvey, é discutida a representação das mulheres na telas apenas com um objeto de admiração, principalmente por diretores homens, mas será que as mulheres conseguem romper esse padrão? Atriz de teatro e televisão durante anos, Halina Reijn trabalhou com Paul Verhoeven no suspense A Espiã (2006) e confessa ter incorporado algumas dos elementos de um dos maiores cineastas do seu país neste filme, contudo, com um olhar acurado para o prazer feminino.
Enquanto no seu primeiro longa-metragem na direção Instinto (2019), Halima explorava uma relação tóxica e tortuosa entre uma terapeuta e um estuprador, subjugada à perspectiva masculina do desejo feminino, Babygirl é uma obra sobre pessoas comuns e o enfrentamento das nossas contradições internas. “Utilizei elementos de thrillers sexuais dos anos 1990, mas invertendo as expectativas.”, explica a autora.
Embora o longa tenha inspirações de Instinto Selvagem (1992), de Paul Verhoeven, e Nove 1/2 Semanas de Amor (1986), de Adrian Lyne, Babygirl traz questionamentos tanto sobre feminilidade quanto sobre masculinidade, principalmente através do papel do jovem estagiário Samuel (Harris Dickinson). “[Para mim,] os homens também estão tentando encontrar seu lugar no mundo: ‘O que significa ser homem hoje? O que é permitido?’. Quero incluir todos na conversa e mostrar que somos todos humanos — anjos e demônios, herois e vilões.“, explica a roteirista sobre a composição dos personagens e um ponto diferencial dos suspense eróticos do século XX.
A Escolha de um Elenco Factível
“Eu interpreto todos os personagens sozinha enquanto escrevo, para garantir que o ritmo funcione“, confessa Halina. Sua abordagem de direção é igualmente meticulosa. “Preciso de estrutura completa, preparo tudo como um militar, com planos detalhados e ensaios rigorosos. Só assim consigo ser livre no momento.”
Essa disciplina encontrou eco em Nicole Kidman, cuja preparação foi igualmente minuciosa. “Nicole chegou aos ensaios com um fichário cheio de anotações e fotos. Isso nos permitiu criar momentos genuínos no set.” Na construção das cenas, Halina também utilizou a técnica de coreografar cada detalhe para, paradoxalmente, transmitir espontaneidade. “A cena no quarto de hotel vermelho, onde ela tem seu primeiro orgasmo verdadeiro, foi ensaiada e gravada em uma tomada longa. Tudo era planejado para parecer improvisado.”
Além de aparecer completamente nua em algumas cenas, Nicole Kidman entrega-se ao personagem na sua jornada confusa sobre poder e dominação, ao mesmo tempo que é uma mulher forte e imponente, ela deseja ser subjugada e submissa. A contradição lhe exigiu uma alta performance e habilidade diferente de seus recentes trabalhos para Netflix, como Tudo em Família (2024) e O Casal Perfeito (2024).
O elenco masculino, composto por Antonio Banderas e Harris Dickinson, também foi selecionado com cuidado para refletir as nuances dos personagens. “Antonio traz credibilidade e complexidade ao papel do marido. Ele não é um vilão; o casamento funciona em muitos aspectos. Mas a crise da protagonista é interna — ela precisa ser honesta consigo mesma antes de ser honesta com ele”. Somente um galã maduro poderia apresentar o desejo e frieza ao mesmo tempo para a diretora.
Sobre Harris Dickinson, Halina destacou sua capacidade de transitar vulnerabilidade e masculinidade. “Ele representa a geração Z, que tem uma visão diferente sobre sexo, hierarquia e corpos. Harris consegue ser confiante e sensível ao mesmo tempo, pedindo consentimento enquanto domina a personagem. Isso é raro.”
Destaque nos filmes Ratos de Praia (2017) e Triângulo da Tristeza (2022), Dickinson, de 28 anos, apesar da pouca idade, não se intimidou diante das cenas íntimas com a musa Nicole Kidman. “Se ele estava impressionado por trabalhar com ela, escondeu muito bem”, brincou a diretora.
Ambiguidades e Reflexões Sobre Amor e Sexo
Com um trofeu no festival de Veneza, Babygirl chega na temporada de prêmios avido por mais títulos para Nicole Kidman, mas também sonha com chances de direção e roteiro original por conta da inversão de olhares do gênero suspense erótico. Para isso, o final é intencionalmente ambíguo. “Queria uma boa resolução para o casal, mas não no estilo Disney. A cena final é como um exercício terapêutico — eles tentam olhar um nos olhos do outro sem desviar. É um esforço para encontrar intimidade novamente.“, explica a diretora sobre a metáfora final entre o homem e o animal; isto é, o mestre e o discípulo.
“Somos todos complexos, e o cinema é um lugar onde podemos explorar essas complexidades. Quero criar histórias que nos desafiem a aceitar nossas imperfeições e a nos conectarmos uns com os outros de maneira mais autêntica”, expõe Halina. Será ainda é novidade falar sobre as relações de poder e o desejo feminino no cinema mainstreaming?
Vale lembrar que o filme Jogo Justo, de Chloe Domont, lançado no último ano no TIFF, trazia uma nova perspectiva para o gênero erótico, mas ficou reduzido ao consumo via streaming e nem chegou a ser nomeado na temporada de prêmios apesar dos oytimos protagonistas Phoebe Dynevor e Alden Ehrenreich. Com distribuição da Diamond Films, Babygirl estreia dia 9 de janeiro de 2025 nos cinemas brasileiros.