“Quando leio um roteiro como esse, penso: é isso que significa ser artista — expressar algo que antes parecia impossível de dizer”, declara Jennifer Lawrence pela tela do Zoom, enquanto observo seu rosto expressivo sob sua franja e um fundo esfumaçado de um ambiente oculto aos meus olhos curiosos.
Este é o nosso terceiro “encontro” no ano por conta da promoção de Morra, Amor (Die, My Love), romance da escritora argentina Ariana Harwicz — um texto brutal, de escrita crua e desprovida de verniz, que aborda a maternidade sem suavização e sem didatismo. Tudo é narrado por Grace, protagonista do livro e, agora, do filme, interpretada por Jennifer Lawrence, em cartaz nos cinemas brasileiros desde 27 de novembro e com estreia no streaming MUBI marcada para 23 de janeiro.

Cannes, expectativa e o peso do retorno
Nosso primeiro encontro ocorreu durante a conferência de imprensa do Festival de Cannes, onde o filme fez sua estreia mundial na Mostra Competitiva pela Palma de Ouro. Embora sem prêmios, o longa pairava entre as expectativas mais intensas do festival, em grande parte por conta da volta de Lynne Ramsay, após oito anos de hiato, ao comando de um longa-metragem, e também pela força do encontro entre Jennifer Lawrence e Robert Pattinson: era a primeira vez que os protagonistas das franquias adolescentes mais rentáveis da última década — Crepúsculo e Jogos Vorazes — contracenavam juntos.
De modo jocoso, Lawrence recordou o primeiro dia de filmagem com Robert Pattinson — uma cena de sexo — e brincou: “Nem tive tempo de depilar as pernas.” Entre risadas, descreveu as aulas de dança interpretativa impostas pela diretora como a verdadeira prova de fogo: “Depois disso, ficar nu parecia quase menos embaraçoso.”
Mas foi a experiência compartilhada da parentalidade que criou o vínculo mais profundo entre eles: “É bom estar com alguém que quer falar sobre o filho tanto quanto você — e que assiste sem reclamar a um vídeo de três minutos do seu bebê”, comentou durante nosso segundo encontro, no dia 29 de setembro, em um Q&A, em Paris.

Entre visibilidade e fratura política
Entre maio, em Cannes, até o anúncio dos indicados ao 83° Globo de Ouro — sua sétima indicação ao prêmio — no último dia 8 de dezembro, Jennifer Lawrence declarou abertamente sua posição contra o massacre de crianças durante os ataques em Gaza, tal como mãe, tal como artista, em 26 de setembro, no Festival de San Sebastián. Por conta da enorme repercussão, dias depois afirmou que não faria mais declarações políticas.
Enquanto algumas pessoas a parabenizaram pela fala, em Paris, outras demonstraram afeto pela sua performance como protagonista dos Jogos Vorazes e questionaram uma possível volta ao papel de Katniss Everdeen, o qual ela respondeu sempre ser possível. Na última semana, a revista Variety reforçou os boatos de sua participação em Jogos Vorazes: Amanhecer na Colheita, apesar de não ter uma declaração oficial do estúdio Lionsgate.
Produzir é convencer
Ao contrário dos seus interlocutores no evento, conversei com Jennifer sobre seu papel como produtora. Falamos também de seus últimos trabalhos, incluindo os documentários Pão, Rosas e Liberdade (2023) e Zurawski v Texas (2024), sobre a perda dos direitos da mulheres com a volta do regime Talibã ao poder e sobre um grupo de mulheres em luta pelo direito ao aborto. “O trabalho como produtora é, na verdade, tornar o projeto viável, nem tanto na parte criativa. Em Morra, Amor, por exemplo, foi convencer Lynne Ramsay a dirigir o filme,” me explica e adiciona que continuará a produzir enquanto houver histórias interessantes a serem contadas com a necessidade de um empurrão.
Essa dimensão política também atravessa sua atuação como produtora. Que tipo de projeto, então, lhe interessa colocar em tela? “Quero produzir algo que conte a história norte-americana”, resume sem entrar em detalhes. Nossa conversa é interrompida por convidados animados por sua presença no salão e ela fala sobre as filmagens para o próximo ano com Martin Scorsese — What Happens at Night (O que Acontece à noite, em tradução livre), adaptação do romance de Peter Cameron —, sua primeira parceria com o renomado diretor conhecido por seus filmes sobre o submundo violento dos Estados Unidos.
Considerado padrinho do projeto, Martin Scorsese é o responsável por apresentar a obra argentina a Jennifer. “É difícil imaginar um presente melhor do que receber um livro diretamente dele”, brincou, quase descrevendo uma cena de ficção. Para ela, o texto de Harwicz era “um mergulho incontornável no psiquismo feminino, ao mesmo tempo brutal e profundamente comovente”. Era impossível largá-lo e impossível não querer transpor aquela violência emocional para o cinema, mesmo que, a princípio, não entendesse como.
Daí veio a decisão de não apenas protagonizar o longa, mas também produzi-lo. E a escolha quase inevitável da diretora Lynne Ramsay: “Sempre me impressionei com a força e a singularidade da visão dela. Quando li o romance em primeira pessoa, pensei: a única pessoa capaz de transformar isso em poesia cinematográfica é a Lynne.” Quase como um pequeno milagre, nas palavras da atriz, Ramsay aceitou, após oito meses e meio de sedução por e-mail.
Maternidade sem mito: instinto e colapso
Quando, neste terceiro encontro pela tela do computador, comecei a explorar com Lawrence suas impressões sobre o livro e sobre a construção de Grace no set, retomamos a experiência que marcou sua carreira: Mãe!, de Darren Aronofsky. “Foi a primeira vez que interpretei uma mãe em cena”, relembrou. “E Morra, Amor foi a primeira vez que interpretei uma mãe sendo, de fato, mãe”, pondera.
“Vejo semelhanças nisso com a experiência das mães no mundo real: o quanto somos pressionadas a ter filhos, criá-los para também produzir, trabalhar… as expectativas que recaem sobre nós são extremamente desgastantes”, relata Jennifer. Se em Mãe! sua personagem encarnava a metáfora da Terra devastada, aqui, em Morra, Amor, a devastação é íntima e cotidiana.

A atriz descreveu a fricção intensa entre sua própria sensibilidade, transformada pela maternidade, e a desordem emocional de Grace. “Muitas vezes, eu sentia pena do personagem de Robert Pattinson. Eu pensava: ‘Ela precisa pedir desculpas, ela precisa lhe dar um alívio’. Mas eu sabia que, da perspectiva da Grace, isso era impensável.” Uma das cenas mais duras no set — a de quebrar a pia do banheiro e descascar as paredes com as próprias unhas — foi o ápice dessa tensão.
Essa entrega radical, segundo Lawrence, só fez sentido porque encontrou eco no olhar da diretora. Em Paris, Jennifer mencionou a sua satisfação com o corte final: “Em um cinema americano que exige comentários definitivos sobre tudo, Lynne teve a ousadia de fazer o oposto: criar uma obra poética, aberta, que não oferece respostas”. Sua admiração pela cineasta escocesa nasceu quando ela assistiu pela primeira vez O Lixo e o Sonho (1999) e ficou encantada pelo seu estilo visual único.
Quando a atriz passa a dirigir o olhar
Estaria Jennifer Lawrence pronta a dar um próximo passo? Nossas últimas palavras foram sobre o futuro dela atrás das câmeras. Em um ano em que três atrizes premiadas ampliaram a atuação feminina na autoria cinematográfica — Kate Winslet, Scarlett Johansson e Kristen Stewart —, a resposta de Jennifer veio acompanhada de um leve coçar de sobrancelhas antes do sorriso:

“Eu adoraria. Atuar é o melhor estágio possível para direção. É uma expansão natural do que fazemos como contadores de histórias. Eu seria muito sortuda em me juntar a elas.” A fala não escondia a ambição, mas o gesto revelava a cautela diante de uma expectativa que ela não parece disposta a assumir agora. Era menos um “talvez” e mais um “quando”.
Ao final desse percurso, em três encontros, o que emerge de Jennifer Lawrence é uma artista em transformação, principalmente por conta dos dois filhos: “a maternidade muda tudo”, declarou durante o 78° Festival de Cannes em maio. Com grandes chances da sua quinta indicação ao Oscar, a atriz de 35 anos escolhe papéis mais maduros sem rejeitar o caminho que a trouxe até o estrelato. Mais do que uma estrela em reinvenção, Jennifer Lawrence se mostra uma artista consciente do próprio tempo — e cada vez mais próxima de assumir o controle total da própria narrativa.
