terça-feira , 5 novembro , 2024

GODZILLA – Uma Herança da Era Atômica

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Em evidência atualmente, o Rei dos Lagartos é um símbolo de um período diferente do cinema japonês

O mais novo crossover entre Godzilla e King Kong está atraindo a atenção de muitos pela premissa: um embate entre dois grandes símbolos do cinema ao estilo de lutas entre kaijus (monstros gigantes) visto anteriormente em produções como Círculo de Fogo e as obras antigas do próprio Godzilla

Esse filme, parte do assim chamado Monsterverse, é portanto uma culminação da versão moderna de King Kong apresentada em Kong: Ilha da Caveira e em ambos os filmes do Godzilla lançados em 2014 e 2019. Estes sendo tentativas visíveis de modernizar dois ícones criados em momentos específicos do cinema. 

O primeiro, por exemplo, remonta aos anos 30 quando os filmes de aventura tinham grande interesse pelos ambientes florestais; Tarzan é um grande ícone desse período por todo o simbolismo do homem desbravando a selvageria da natureza. Dessa maneira, quando King Kong chega em seu filme próprio em 1933 ele surge como uma subversão dessa onda aonde agora é a natureza que desbrava a selva de pedra.

Tarzan: o Homem Macaco” de 1932 era o referencial representativo até então da relação homem\natureza

Godzilla só veio alguns anos depois, mais especificamente em 1954, na obra Gojira. Na superfície essa pode ser encarada como uma tentativa do mercado cinematográfico japonês de seguir o movimento iniciado nos Estados Unidos durante os anos 30, com o próprio King Kong, de elaborar produções com monstros gigantes em ambientes urbanos. No entanto, o contexto mundial ao redor da produção de Gojira faz toda a diferença.

Na chamada Era Atômica se tornou a obsessão de muitas nações a necessidade de possuir mais armamentos que seus vizinhos e, para alguns, que esses armamentos fossem nucleares. As diversas revoluções e contra-revoluções que ocorreram durante a Guerra Fria invariavelmente estavam ligadas à corrida armamentista de países mais pobres e pela disputa de influência entre Estados Unidos e União Soviética, a quem muito era interessante essas instabilidades espalhadas.

As farpas trocadas entre as duas potências no período não se limitaram apenas ao campo político e econômico mas ao cinema também, este visto com bons olhos por ambos como uma potencial ferramenta de propaganda. No artigo The Cinema: American Weapon for the Cold War escrito pelo professor Pierre Sorlin é apontado que em meados do século XX o cinema detinha um poder invejável junto as massas.

“Entre 1948 e 1961, o cinema era simultaneamente uma fonte de informação e um meio de modelar a perspectiva pública sobre o mundo contemporâneo. As imagens eram inicialmente destinadas aos países ocidentais, especialmente na Europa, onde elas contribuíram para formar a opinião pública”.

Não acidentalmente muitas das obras produzidas em meados dos anos 50 tinham um elevado teor de ficção cientifica pessimista, quase que conscientes de que o fim do mundo poderia ocorrer por meio da tecnologia. Guerra dos Mundos de 1953 foi, por exemplo, uma atualização interessante da obra de H.G. Wells feita no século XIX sobre a destruição perpetrada por uma invasão marciana com tecnologia superior à humana.

Guerra dos Mundos” atualizou para os anos 50 o medo da tecnologia

Portanto, essa noção de que a instabilidade global estava ligada de alguma forma ao progresso científico e consequentemente a proliferação de armas nucleares não se limitou apenas no ocidente mas encontrou reverberações no Japão, este com ligações bem mais sensíveis com todo o drama atômico do período devido às explosões em Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial..

Correndo em concordância vinha a indústria de cinema japonesa que atravessava um período de reconstrução. Da mesma forma que ocorreu na Alemanha, o cinema no Japão durante o período pré-fascismo já havia se estabilizado como um negócio rentável e que via novos estúdios surgindo com regularidade, sendo capaz de competir com o fluxo de filmes que vinham do ocidente.

Esse período inicial de século é retratado como um período empolgante quando estilos consagrados do cinema nacional passaram a se popularizar como os filmes de época conhecidos como Jidaigeki e os de samurai (em uma época pré Akira Kurosawa o nome de Daisuke Ito era a grande referência do gênero de samurais) e, durante os anos 30, foi implementada a tecnologia sonora em filmes. 

Daisuke Ito: um dos primeiros grandes cineastas japoneses

Nas palavras de Vibeke Oseth Gustavsen para o artigo The Evolution of the Japanese Period Film é dito que “os custos de filmagem triplicaram, porém enquanto os diretores eram desencorajados em assumir quaisquer riscos em seus projetos o público desejava experimentos e as companhias desafiando umas às outras…”

Essa rápida evolução viria a sofrer um redirecionamento após o princípio de expansão do império japonês a partir de 1931 quando o cinema passou a ser explorado como uma ferramenta publicitária para incitar o apoio ao imperador e a validação da expansão e após o fim da guerra, de forma similar ao que aconteceu na França durante o mesmo período, houve uma forte interferência estrangeira na gerência do cinema.

Dessa forma, quando chegam os anos 50 o efeito da cultura ocidental era bastante forte no Japão; em especial para o produtor Tomoyuki Tanaka, que poderia dar seguimento a um velho projeto esquecido pela Toho Studios, e para a referência em efeitos especiais do cinema japonês Eiji Tsuburaya (que alguns anos depois participaria da produção de Ultraman). O ponto que tornou o projeto de Gojira diferente de King Kong foi quando Ishiro Honda assumiu a direção com o objetivo de tornar o monstro gigante uma metáfora para discutir como o trauma nacional do Japão dialogava com a instabilidade do mundo.

Tsuburaya e sua maior criação

Peter H. Brothers aponta nas linhas de Japan’s Nuclear Nightmare: How the Bomb Became a Beast Called Godzilla que Honda possuía uma ligação bastante pessoal com os traumas do pós-guerra japonês. “Honda conhecia em primeira mão os horrores da guerra… Após a rendição ele passou seis meses como prisioneiro de guerra e depois de ser repatriado ele andou pelas ruínas do que havia sido a cidade de Hiroshima. Como resultado desses eventos, esse filme é um mórbido testemunho dessas experiências”.

Ainda segundo Brothers a condução da obra por Honda é levada como um simulador dos momentos finais do Japão na guerra, ainda que o desejo do diretor não fosse que essa correlação parecesse muito explícita ou interferisse na diversão do espectador. O surgimento da criatura, nascida de um clarão avistado por pescadores no início do filme, remete à experiência visual daqueles que presenciaram as explosões em Hiroshima e Nagasaki; o rugido de Godzilla nasce de uma edição dos sons reais de alertas antibombardeio, assim como seus passos remetem as subsequentes explosões que vinham após essas sirenes.

A aposta era arriscada para os estúdios Toho, afinal eles estavam lidando com um novo gênero inexplorado dos kaijus, diferente de tudo que havia dado certo no cinema do Japão anteriormente. Mesmo assim o retorno cultural inesperado tornou Gojira não só um ícone no Japão como também o filme nipônico mais conhecido e reverenciado da história.

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Esse filme, parte do assim chamado Monsterverse, é portanto uma culminação da versão moderna de King Kong apresentada em Kong: Ilha da Caveira e em ambos os filmes do Godzilla lançados em 2014 e 2019. Estes sendo tentativas visíveis de modernizar dois ícones criados em momentos específicos do cinema. 

O primeiro, por exemplo, remonta aos anos 30 quando os filmes de aventura tinham grande interesse pelos ambientes florestais; Tarzan é um grande ícone desse período por todo o simbolismo do homem desbravando a selvageria da natureza. Dessa maneira, quando King Kong chega em seu filme próprio em 1933 ele surge como uma subversão dessa onda aonde agora é a natureza que desbrava a selva de pedra.

Tarzan: o Homem Macaco” de 1932 era o referencial representativo até então da relação homem\natureza

Godzilla só veio alguns anos depois, mais especificamente em 1954, na obra Gojira. Na superfície essa pode ser encarada como uma tentativa do mercado cinematográfico japonês de seguir o movimento iniciado nos Estados Unidos durante os anos 30, com o próprio King Kong, de elaborar produções com monstros gigantes em ambientes urbanos. No entanto, o contexto mundial ao redor da produção de Gojira faz toda a diferença.

Na chamada Era Atômica se tornou a obsessão de muitas nações a necessidade de possuir mais armamentos que seus vizinhos e, para alguns, que esses armamentos fossem nucleares. As diversas revoluções e contra-revoluções que ocorreram durante a Guerra Fria invariavelmente estavam ligadas à corrida armamentista de países mais pobres e pela disputa de influência entre Estados Unidos e União Soviética, a quem muito era interessante essas instabilidades espalhadas.

As farpas trocadas entre as duas potências no período não se limitaram apenas ao campo político e econômico mas ao cinema também, este visto com bons olhos por ambos como uma potencial ferramenta de propaganda. No artigo The Cinema: American Weapon for the Cold War escrito pelo professor Pierre Sorlin é apontado que em meados do século XX o cinema detinha um poder invejável junto as massas.

“Entre 1948 e 1961, o cinema era simultaneamente uma fonte de informação e um meio de modelar a perspectiva pública sobre o mundo contemporâneo. As imagens eram inicialmente destinadas aos países ocidentais, especialmente na Europa, onde elas contribuíram para formar a opinião pública”.

Não acidentalmente muitas das obras produzidas em meados dos anos 50 tinham um elevado teor de ficção cientifica pessimista, quase que conscientes de que o fim do mundo poderia ocorrer por meio da tecnologia. Guerra dos Mundos de 1953 foi, por exemplo, uma atualização interessante da obra de H.G. Wells feita no século XIX sobre a destruição perpetrada por uma invasão marciana com tecnologia superior à humana.

Guerra dos Mundos” atualizou para os anos 50 o medo da tecnologia

Portanto, essa noção de que a instabilidade global estava ligada de alguma forma ao progresso científico e consequentemente a proliferação de armas nucleares não se limitou apenas no ocidente mas encontrou reverberações no Japão, este com ligações bem mais sensíveis com todo o drama atômico do período devido às explosões em Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Guerra Mundial..

Correndo em concordância vinha a indústria de cinema japonesa que atravessava um período de reconstrução. Da mesma forma que ocorreu na Alemanha, o cinema no Japão durante o período pré-fascismo já havia se estabilizado como um negócio rentável e que via novos estúdios surgindo com regularidade, sendo capaz de competir com o fluxo de filmes que vinham do ocidente.

Esse período inicial de século é retratado como um período empolgante quando estilos consagrados do cinema nacional passaram a se popularizar como os filmes de época conhecidos como Jidaigeki e os de samurai (em uma época pré Akira Kurosawa o nome de Daisuke Ito era a grande referência do gênero de samurais) e, durante os anos 30, foi implementada a tecnologia sonora em filmes. 

Daisuke Ito: um dos primeiros grandes cineastas japoneses

Nas palavras de Vibeke Oseth Gustavsen para o artigo The Evolution of the Japanese Period Film é dito que “os custos de filmagem triplicaram, porém enquanto os diretores eram desencorajados em assumir quaisquer riscos em seus projetos o público desejava experimentos e as companhias desafiando umas às outras…”

Essa rápida evolução viria a sofrer um redirecionamento após o princípio de expansão do império japonês a partir de 1931 quando o cinema passou a ser explorado como uma ferramenta publicitária para incitar o apoio ao imperador e a validação da expansão e após o fim da guerra, de forma similar ao que aconteceu na França durante o mesmo período, houve uma forte interferência estrangeira na gerência do cinema.

Dessa forma, quando chegam os anos 50 o efeito da cultura ocidental era bastante forte no Japão; em especial para o produtor Tomoyuki Tanaka, que poderia dar seguimento a um velho projeto esquecido pela Toho Studios, e para a referência em efeitos especiais do cinema japonês Eiji Tsuburaya (que alguns anos depois participaria da produção de Ultraman). O ponto que tornou o projeto de Gojira diferente de King Kong foi quando Ishiro Honda assumiu a direção com o objetivo de tornar o monstro gigante uma metáfora para discutir como o trauma nacional do Japão dialogava com a instabilidade do mundo.

Tsuburaya e sua maior criação

Peter H. Brothers aponta nas linhas de Japan’s Nuclear Nightmare: How the Bomb Became a Beast Called Godzilla que Honda possuía uma ligação bastante pessoal com os traumas do pós-guerra japonês. “Honda conhecia em primeira mão os horrores da guerra… Após a rendição ele passou seis meses como prisioneiro de guerra e depois de ser repatriado ele andou pelas ruínas do que havia sido a cidade de Hiroshima. Como resultado desses eventos, esse filme é um mórbido testemunho dessas experiências”.

Ainda segundo Brothers a condução da obra por Honda é levada como um simulador dos momentos finais do Japão na guerra, ainda que o desejo do diretor não fosse que essa correlação parecesse muito explícita ou interferisse na diversão do espectador. O surgimento da criatura, nascida de um clarão avistado por pescadores no início do filme, remete à experiência visual daqueles que presenciaram as explosões em Hiroshima e Nagasaki; o rugido de Godzilla nasce de uma edição dos sons reais de alertas antibombardeio, assim como seus passos remetem as subsequentes explosões que vinham após essas sirenes.

A aposta era arriscada para os estúdios Toho, afinal eles estavam lidando com um novo gênero inexplorado dos kaijus, diferente de tudo que havia dado certo no cinema do Japão anteriormente. Mesmo assim o retorno cultural inesperado tornou Gojira não só um ícone no Japão como também o filme nipônico mais conhecido e reverenciado da história.

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