Aventura solo do cavaleiro Gawain possui tradicionais elementos fantásticos
Próximo lançamento do estúdio A24, Green Knight chamou a atenção desde cedo pelo visual apresentado em seu teaser trailer. Somado a isso tem a escassez de maiores detalhes sobre a trama e como o protagonista, interpretado por Dev Patel, se encaixa nisso tudo. Mesmo assim, é possível inferir certas coisas que estarão no filme com base tanto no próprio título quanto no nome do protagonista.
Gawain não é um nome estranho àqueles familiarizados com as histórias envolvendo o Rei Arthur e os Cavaleiros da Távola Redonda; sobrinho do monarca, ele ganha maior importância a partir do momento que os paladinos partem na busca pelo Santo Graal. Gawain é filho de Morgause, figura importante no ciclo arturiano, cuja hereditariedade varia conforme a versão em questão.
Em Le Morte d’Arthur, uma das grandes referências no tocante às histórias de Arthur, escrita por Thomas Malory em 1485 é descrito que Morgause é filha de Igraine (mãe do futuro rei de Camelot) com seu então marido Gorlois, isso antes de conhecer Uther Pendragon. Dessa maneira a obra posiciona Morgause como irmã de Morgana e meia irmã de Arthur, por vezes como mãe de Mordred (papel esse que foi sendo transferido para Morgana ao longo dos séculos) que é peça central na queda de Camelot.
Dessa forma, Gawain tem como um dos seus elementos imutáveis a relação mãe\filho com Morgause e o Rei Lot (soberano da região de Lothian na Escócia), bem como sua personalidade cortês e heróica, não diferenciando do perfil geral dos integrantes da távola. Isso acaba levando-o à aventura em Sir Gawain e o Cavaleiro Verde, escrito pelo até hoje anônimo Poeta de Pearl no século XIV.
A trama começa com uma celebração em Camelot para comemorar a chegada do ano novo; Arthur reúne todos os seus principais cavaleiros, vassalos e serviçais no grande salão para que possam aproveitar toda a comida e bebida. Durante a festividade ele então pede que seus companheiros contem algumas das aventuras mais fantásticas que eles vivenciaram; não demora para que a festa seja interrompida pela chegada de um misterioso cavaleiro verde, mais forte fisicamente do que todos os presentes e portando como única arma um machado gigantesco.
Ele então proclama um desafio inicialmente voltado para o Rei: um dos presentes deveria desferir-lhe um golpe com o máximo de força que conseguisse utilizando o machado verde a que carregava. Em contrapartida, após levar o dano o cavaleiro verde teria o direito de rebater fisicamente o desafiante; o prêmio seria seu poderoso machado. Outra condição apresentada era que após um dos membros da corte se voluntariar e desferir o ataque, ele teria o prazo de um ano e um dia para se apresentar diante do cavaleiro verde e assim receber seu golpe pendente.
A hesitação geral no ambiente é o primeiro indício de interpretação interessante feita pelo misterioso autor de Sir Gawain e o Cavaleiro Verde (quase uma observação autoconsciente), uma vez que nenhum dos lendários membros da távola redonda se voluntariam de início e acabam por ouvir como resposta uma enxurrada de deboches do invasor sobre como suas coragens pareciam pertencer mais às lendas que ele ouvira do que à realidade.
Em defesa da honra de sua corte, Arthur se voluntaria a dar o primeiro golpe. No entanto, antes de fazê-lo, Gawain o impede e se oferece para atacar em seu lugar; seus argumentos remetem a característica humilde do personagem presente em outras versões, onde ele diz que não é o mais habilidoso dos presentes e que sua morte seria menos trágica do que a de seu tio. Com a permissão do rei ele se apossa do machado e desfere um golpe certeiro no cavaleiro verde, arrancando-lhe a cabeça.
A nobreza apresentada por Gawain é celebrada por Alan M. Markman em seu artigo The Meaning of Sir Gawain and the Green Knight. “A parte mais forte de seu personagem, no entanto, é o seu senso de lealdade. Ele é leal ao seu senhor, Arthur, e ele é leal ao seu anfitrião, Bercilak. Ele é um homem que se pode contar que irá manter a palavra.”
Esse, porém, não é o final da história. Mesmo com a cabeça cortada após o golpe de Gawain, o cavaleiro verde permanece vivo, recolhe a cabeça e sai cavalgando para fora do salão enquanto afirma que Gawain agora teria a obrigação de ir a seu encontro e receber um golpe similar ao que o cavaleiro verde levara.
Eventualmente, quando começa sua jornada rumo ao encontro derradeiro, o cavaleiro da távola redonda acaba sendo hospedado por um nobre (o mencionado Bercilak) que é detentor das terras aonde deverá ocorrer seu encontro com o cavaleiro verde. O que se segue é um estranho triângulo amoroso que se forma entre o guerreiro, o nobre e a esposa do nobre uma vez que ao visitante é imposto uma condição de que, no período que ele estiver como hóspede, a cada jantar ele deve entregar ao anfitrião algo que ele recebeu.
Nisso, a cada noite que passava a esposa de Bercilak visitava Gawein em seus aposentos; encontrando sempre uma rejeição respeitosa do cavaleiro. Ela enfim oferece a ele um beijo e, mesmo enfrentando forte conflito interno, Gawain aceita. Sendo assim, ao se reunir com o anfitrião para cear é perguntado por ele o que o hóspede recebeu para assim lhe entregar também e Gawain lhe dá um beijo exatamente igual ao que recebeu da senhora do castelo; assim se repetindo cada noite.
Inesperadamente uma obra do século XIV consegue abordar de maneira surpreendentemente prática temas como adultério e homossexulidade sem cair em alguma análise religiosa ou moral. A figura da condessa (supostamente o personagem de Alicia Vikander no vindouro filme), diga-se de passagem, se tornou por si só uma personagem feminina que ao longo do tempo foi sendo dissecada e interpretada como uma figura que habilmente sabe controlar os eventos em seu castelo e ambos o marido e Gawain.
Por mais que maiores detalhes de Green Knight ainda sejam nebulosos, é esperado que esse seja o caminho a ser seguido. Mais do que isso, pode ser um princípio de tentativa da A24 em ter uma franquia para chamar de sua (seria a primeira do estúdio) focado na mitologia arturiana onde cada filme seria um exemplar totalmente autoral e sem obrigatoriedade de dialogar com outra produção.