Há exatamente um ano, o episódio final da série Falcão e o Soldado Invernal estreava no Disney+ trazendo Sam Wilson (Anthony Mackie) como o novo Capitão América do MCU. A mudança foi a primeira de peso dessa nova para o núcleo dos Vingadores nos cinemas. Afinal, agora o time terá um novo líder que sequer poderes terá. Mas é interessante reparar como a condução da série pode ser analisada por duas perspectivas. Ah, caso você ainda não tenha percebido, esse texto contém SPOILERS da série. Caso você ainda pretenda assisti-la, recomendamos que só leia a matéria depois de finalizar a produção.
Falando em níveis de continuidade e de acompanhar o MCU como um todo, a Marvel trabalhou essa série como um filler de luxo. Porque um fã que não tenha assistido a Falcão e o Soldado Invernal vai conseguir entender quando o Sam Wilson aparecer nas telonas com seu traje e escudo de Capitão América, já que sua última participação nas telonas foi justamente aceitando o escudo de Steve Rogers (Chris Evans) das mãos idosas do próprio Steve, lá em Vingadores: Ultimato (2019).
Esse momento já dava a entender que ele aceitaria o título e o “cargo”. No entanto, a série aprofunda a questão em um momento no qual a uma guerra racial ocorre sem tanto alarde nos Estados Unidos. Diante de tantos casos de racismo e xenofobia no país, faz muito sentido que a mudança de um símbolo histórico dos EUA ser substituído por um herói negro causaria polêmica.
E nesse ponto, a série tem dois méritos indiscutíveis. O primeiro é mostrar o governo americano enganando Sam Wilson para que ele desista de um escudo que sequer é de propriedade do governo, dando a entender que a arma será preservada em um museu, para logo em seguida dá-la a um soldado branco que jamais teve o aval do próprio Steve Rogers e que escondia crimes de guerra em seu currículo.
O outro mérito foi trazer a trágica e fantástica história de Isaiah Bradley, o Capitão América apagado da história para encobrir os crimes do governo americano, para as telas. Como fã do personagem nos quadrinhos, jamais esperei que a Marvel fosse ter coragem para trazer essa história para o MCU. Não só pelo forte caráter racial dela, mas porque ela afeta diretamente o “American Way of Life” e toda aquela propaganda mascarada pró-América que alguns de seus personagens carregam. E a adaptação foi de uma fidelidade emocionante, adicionando um elemento importante que não constava nas HQs: o rancor. Nos quadrinhos, Isaiah ficou mentalmente debilitado, tendo dificuldade de expressar emoções, deixando toda a tristeza e o rancor pela injustiça para que sua esposa carregasse. Ao efetivamente dar voz a esse personagem, a série trouxe questionamentos pertinentes e canonizou um de seus maiores acertos recentes. E terminar a produção com ele sendo honrado e inserido na história, obrigando o governo a reconhecer seus erros, foi de um impacto enorme.
Além disso, a dualidade entre Bucky (Sebastian Stan) e Sam, que esbanjam carisma juntos em tela, foi importante para o desenvolvimento de ambos os personagens. Maltratado ao longo de sua vida, privado de existir e de ter uma consciência, Bucky se fechou em uma casca que o impediu de entender questões alheias. Bloqueio esse que também o afetava, já que passou a guardar seus tormentos para si, existindo como homem traumatizado e fora de seu tempo, extremamente apegado ao passado.
E ao ver Sam abrindo mão do escudo, do legado de seu melhor amigo, o Soldado Invernal vê sua melhor parte, a única memória positiva que tinha em sua cabeça, sendo entregue para um qualquer. Isso o cega a ponto de não entender as questões raciais que sondavam seu amigo e o faziam relutar em aceitar o legado do Capitão América.
A partir do momento em que ele, com a ajuda de Sam, entende a situação e consegue se resolver com os fantasmas do passado, Bucky percebe que o amigo precisa de apoio e não mais questionamentos, ainda mais tendo que limpar o legado do Capitão América, que sofreu uma mancha inapagável com o assassinato de um apátrida cometido aos olhos do mundo por John Walker (Wyatt Russell). A cena do Sam, em lágrimas, limpando o sangue do escudo após recuperá-lo é muito forte, porque ele entende que se ceder ao que os inimigos querem, coisas piores podem acontecer. É uma escolha dolorida para ele, que aceita carregar o fardo de ser o Capitão América por algo muito maior que ele.
Sam sabe que as coisas serão mais difíceis para ele, que na figura de um homem negro assumindo um símbolo historicamente branco, ele não poderá cometer um errinho sequer, senão vão cair matando em cima, assim como alguns fãs fizeram nas redes sociais ao jogar hate na escolha do personagem para assumir esse manto.
E essa mudança de postura fica nítida no poderoso discurso final que ele faz para os senadores e políticos, que acaba sendo transmitido pela TV para diversos cantos do mundo. Esse momento é fantástico e representa a essência revolucionária do Capitão América, que cansou de enfrentar seu próprio governo nos quadrinhos e até mesmo nos cinemas, mostrando que o certo precisa estar acima de conceitos como fronteiras e países. É um momento típico do herói e feito de forma pacífica, por meio de um discurso de alguém que reconhece sua importância e aproveita para mandar o aviso de que não vai se curvar para as más expectativas que nutrem sobre ele apenas por estar ali com aquela roupa.
“Quer saber? Tem razão. E isso é uma coisa boa. Finalmente temos uma luta em comum agora. Pensem só nisso. Pela primeira vez, todos que estão implorando e digo, literalmente implorando para vocês sentirem como cada dia é difícil. Agora vocês sentem. Como é se sentir desamparado? Se vocês se lembrassem como é se sentir desamparado e se deparar com uma força tão poderosa a ponto de apagar metade do planeta, vocês saberiam que teria exatamente o mesmo impacto. Ninguém disse que é uma decisão fácil, senador. Sou um homem negro usando as estrelas e listras. O que eu não entendo? Sempre que eu levanto essa coisa, eu sei que há milhões de pessoas por aí que vão me odiar por isso. Até agora, exatamente aqui, eu sinto… Os olhares, os julgamentos. E não tem nada que eu possa fazer para mudar. Mas ainda estou aqui, sem super soro, sem cabelo loiro ou olhos azuis. O único poder que eu tenho é acreditar que podemos fazer melhor. Não podemos esperar que as pessoas façam alguma coisa sem que a gente dê algo em troca. Vocês controlam os bancos! Vocês podem até mover fronteiras! Podem derrubar uma floresta com um e-mail, podem alimentar milhões de pessoas com um telefonema. Mas a pergunta é: ‘Quem está com vocês quando tomam essas decisões?’. São as pessoas que vocês vão impactar? Ou são só mais pessoas como vocês? Essa garota morreu tentando impedir vocês, e ninguém parou para se perguntar o porquê. Vocês têm que fazer melhor, senador! Vocês têm que se impor! Porque se não, a próxima Karli vai, e não vão querer ver a versão 2.0… As pessoas acreditavam tanto naquela causa, que a ajudaram a desafiar os governos mais fortes do mundo. E por que acham que isso aconteceu? Vocês aqui têm tanto poder quanto um deus insano ou uma adolescente desorientada. A pergunta que devem se fazer é: ‘Como vamos usá-lo?'”, disse Sam Wilson, o Capitão América.
Desse momento em diante, qualquer um que tivesse o mínimo de dúvida acerca da escolha do homem para expandir o legado do Capitão América se rendeu ao novo líder dos Vingadores, que promete comandar uma equipe ainda mais poderosa do que o time original. Fora isso, mesmo sem os poderes de super força do Steve, o Capitão agora terá asas e o escudo, o que permitirá novos golpes e combos de ataques interessantíssimos. Mas o atrativo mesmo é ver como a personalidade pacificador de Sam vai ditar os rumos da nova versão dos Heróis Mais Poderosos da Terra, já que Steve tinha um perfil confrontador, enquanto Sam procura mais entender o outro lado e resolver as coisas na conversa em vez de iniciar uma guerra a qualquer momento. Ele é mais racional que passional e isso promete uma abordagem muito interessante para o futuro do herói nas telonas.
Falcão e o Soldado Invernal está disponível no Disney+.