Em 2012, a adorada saga jovem-adulta ‘Jogos Vorazes’, de Suzanna Collins, ganhava sua primeira adaptação para os cinemas. O longa-metragem, que fez um estrondo gigantesco de bilheteria e ajudou a alavancar a carreira artística de Jennifer Lawrence, conquistou o público e a crítica, apresentando até mesmo àqueles que não tinham lido os livros um mundo distópico e recheado de críticas sociais – e que inclusive abriram portas para diversas releituras do gênero chegarem às telonas.
A trama, centrada em Katniss Everdeen (Lawrence), é ambientada em Panem, que antigamente comportava os Estados Unidos e o Canadá e que surgiu como resposta a um levante rebelde. Aqui, a Capital preza pelo bem-estar da elite e coloca os “perdedores da guerra” como subservientes a um governo autoritário e fascista que escolhe, ano a ano, vinte e quatro jovens tributos para lutarem entre si em um espetáculo de sangue e violência. E é claro que, nesse trágico contexto, Katniss insurge como a primeira centelha de enfrentamento contra a Capital e o sádico Presidente Snow (Donald Sutherland), servindo como símbolo de resistência que culminaria em uma guerra civil à medida que a narrativa se desenrola.
Depois do sucesso gigantesco do capítulo inicial, Francis Lawrence foi escalado para comandar a sequência, ‘Jogos Vorazes: Em Chamas’, substituindo Gary Ross na cadeira de direção. E, enquanto o romance de Collins ganhou aclame universal por parte do público e da crítica, é quase automático ficar com um pé atrás quando lidamos com uma adaptação audiovisual – por razões que incluem a exclusão de personagens e acontecimentos-chave do enredo ou até mesmo aspectos técnicos que não conseguiriam traduzir o incrível universo construído pela romancista. Felizmente, Lawrence não apenas conseguiu repetir o feito de Ross, mas entregou a melhor entrada da franquia fílmica e uma das melhores versões do século.
Antes de analisarmos a competência estilística do longa, vamos relembrar a história: depois de terem ganhado a 74ª edição dos Jogos Vorazes, Katniss e Peeta Mellark (Josh Hutcherson) atravessam o país em uma espécie de turnê dos vitoriosos, sofrendo com a impossibilidade de ajudarem aqueles que perderam seus entes queridos e observando, impotentes, as forças armadas de Snow se voltando contra a população. Assim que retornam para o Distrito 12, juntam-se ao mentor Haymitch Abernathy (Woody Harrelson) em seus novos lares apenas para descobrirem que Snow tem planos muito maiores. Afinal, o pacto suicida adotado por Katniss e Peeta no final dos Jogos inspirou diversas pessoas a se levantarem contra o governo e a darem início a protestos – e, temendo sofrer uma deposição, Snow resolve cortar o mal pela raiz. Ele, pois, se alia a Plutarch Heavensbee (Phillip Seymour Hoffman), o novo idealizador dos Jogos, e anuncia o Massacre Quaternário, em que todos os vencedores das edições anteriores retornarão para a Arena em um combate único.
A narrativa construída é bem similar ao do primeiro filme no tocante à ambientação. Entretanto, a iteração anterior serviu como apresentação do universo distópico, tomando o tempo necessário para mostrar os personagens, delinear os cenários e fornecer explicações valiosas para os novos fãs da saga; agora, as coisas mudaram. Os Jogos estão muito mais sofisticados e contam com participantes de outras edições que conquistaram o povo e que têm sede de vingança por serem obrigados a sair de suas confortáveis vidas e terem sido jogados em mais um pesadelo. E é nessa intrincada maquinaria que Lawrence pode aproveitar o fato do filme ser uma sequência para expandir a mitologia e arrancar o melhor tanto de seu time criativo quanto do elenco.
Considerando que Katniss é a protagonista, é natural que ela sobreviva. O que nos chama a atenção são as condições que possibilitam sua segunda vitória e os segredos que se escondem na Arena e nos bastidores dos Jogos. Como já pintado no primeiro longa e no começo de ‘Em Chamas’, Katniss se tornou um símbolo de resistência e é a peça-chave para derrubar o governo fascista de Snow e permitir que o povo dos Distritos retome o poder; dessa forma, nomes como Finnick Odair (Sam Claflin), Johanna Mason (Jena Malone) e Beetee Latier (Jeffrey Wright) unem forças para garantir que ela não seja morta. O problema é que nem todos os tributos selecionados para o Massacre Quaternário aceitam participar do plano, tornando tudo mais perigoso do que tinham imaginado.
‘Jogos Vorazes’ é conhecido por trazer inúmeras temáticas importantes que discorrem sobre a futilidade da sociedade elitista, a disparidade entre classes, o autoritarismo, a política do pão e circo e vários outros. ‘Em Chamas’ continua a explorar essas discussões, mas de maneira muito mais brutal e surpreendente. Por exemplo, Lawrence aproveita as incursões críticas do ultranacionalismo tratado por Collins para apresentar os Carreiristas – jovens mais ricos, normalmente dos Distritos 1 e 2, que passam a vida treinando em Academias para se tornarem tributos de guerra (uma honra pela qual anseiam até os dezoito anos). Não é surpresa que eles sejam os principais inimigos a serem enfrentados por Katniss e aliados – afinal, é notável como se tornaram uma amálgama de peões submissos a uma força inigualável e de que não têm como escapar. Obviamente, não torcemos para que eles vençam, mas não podemos deixar de sentir uma pontinha de empatia quando compreendemos o conformismo mandatório em que se exilam.
Para além da estrutura de enredo, Lawrence faz um trabalho impecável na direção, não só promovendo o amadurecimento dos personagens, mas garantindo que os deslizes de ritmo não existam e que tudo parta de uma progressão simples e muito funcional. A princípio, temos a claustrofóbica sensação de afazia de Katniss, que lida até mesmo com o trauma de ter participado dos Jogos (uma fragilidade emocional justificável e que alimenta seu desejo por vingança contra Snow e os outros); pouco depois, ela é forçada a deixar as emoções de lado para sobreviver – e insurgir como força descomunal para impedir que a história se repita e que a justiça seja feita.
‘Jogos Vorazes: Em Chamas’ surpreendeu a todos quando lançado nos cinemas e, uma década mais tarde, permanece como a melhor entrada da saga. E, se você acha que o filme pode ter envelhecido mal, garanto que esse não é o caso – e que revisitá-lo é sempre uma ótima escolha.