M3GAN gira em torno de uma jovem cientista que trabalha no desenvolvimento de brinquedos tecnológicos. Ela trabalhava num projeto secreto, quando perdeu a irmã e acabou se tornando guardiã legal de sua sobrinha, que está sofrendo com a morte dos pais. Nesse caos, ela termina seu projeto: uma boneca de alta tecnologia, feita para ser a melhor amiga das crianças, a M3GAN. O problema é que a menininha eletrônica perde o controle de sua programação inicial e começa a matar qualquer um que chateie a menina.
Apesar de se vender como um Terror Pop, o longa se sustenta mais como uma aventura de ficção com um ou outro jumpscare manjado. E isso de forma alguma diminui o filme, já que ele entretém com maestria e diverte o público com suas ideias não inovadoras, mas bem executadas. Mais do que isso, M3GAN faz parte de uma leva de filmes recentes que tentam trazer de forma bem superficial, por meio da tecnologia, a dificuldade da geração atual de pais e mães em lidar com a tecnologia na hora de criar os filhos.
Na comunidade científica e na pedagogia, existe um longo debate sobre a inserção de aparatos tecnológicos, como smartphones e tablets, na educação infantil. Enquanto alguns criticam o uso, há outras vertentes que apontam para o desenvolvimento de novas habilidades mediante uso da tecnologia. Em uma pesquisa realizada em 2019 por cientistas canadenses e norte-americanos, publicada na JAMA Pediatrics, eles chegaram à conclusão de que houve um aumento considerável na exposição à telas em crianças de até 3 anos de idade, que ficavam de frente para telas de telefones, tablets e televisores, por até 25h semanais. De acordo com a pesquisa, o foco infantil nas telas pode fazer com que a criança pequena perca oportunidades de olhar, aprender e dominar habilidades importantes para seu desenvolvimento, já que não tira os olhinhos das animações e das cores das telinhas. E isso pode acabar limitando o desenvolvimento de certas habilidades, como interações sociais, um atraso na fala e até mesmo reduzir o tempo dedicado à prática de atividades físicas.
Por outro lado, a própria UNESCO recomenda o uso de tablets no aprendizado de salas de aula. Isso porque ajuda no desenvolvimento de certas habilidades motoras, pode ajudar a melhorar o foco e a inclusão em sala de aula. No entanto, esse uso só é recomendado para crianças acima dos dois anos de idade. É quase unanimidade que a melhor coisa para as crianças nos primeiros anos de vida é explorar o mundo real sob a tutela de um adulto. Mas em ambos os casos, de quem é a favor ou contra do uso dessas tecnologias, é consenso que são aparelhos que vieram para ficar e caso as crianças sejam expostas a eles, deve haver um limite de uso diário. Quanto mais novinha a criança, menos horas de exposição são indicadas.
Por conta da correria e do ritmo insano que o mercado de trabalho exige nos dias atuais, a nova geração de pais e mães acaba recorrendo a esses aparatos para ajudar a prender a atenção de seus bebês ou filhos mais novos enquanto trabalham. E isso vem rendendo uma série de críticas sociais e científicas, que parecem ter chegado com força nos filmes de terror/ ficção.
No caso de M3GAN, a boneca é usada praticamente como uma ferramenta terapêutica para a jovem Cady, que viu seu mundo virar de ponta-cabeça após seus pais morrerem em um acidente. O interessante é que o filme faz questão de deixar escancarado desde a primeira cena que o debate sobre o uso de aparelhos eletrônicos na criação dos jovens será o tema principal do longa, quando a mãe da pequena discute com o pai sobre os brinquedos atuais e como alguém pode achar divertido passar horas com o rosto enfiado em um tablet. No entanto, assim como indicam as pesquisas, eles estabeleceram limites de tempo de uso, o que é mostrado justamente pela ótica de Cady, que observa mais a paisagem e seu brinquedo durante a viagem fatal.
Após o acidente, a menina fica sob a guarda da tia, que é bem mais jovem que a mãe e completamente focada em sua carreira. Despreparada para receber uma criança em sua casa, a jovem tem um lar frio e cheio de brinquedos de coleção, daqueles que não podem ser abertos. E com os prazos apertados no trabalho, ela não consegue dar atenção para a sobrinha. Para tentar compensar o tempo e o afeto não dados, ela deixa que a menina passe quanto tempo quiser brincando com um tablet. Com a chegada da M3GAN, a menina passa a brincar, contar segredos e ser educada pela boneca cibernética, que se torna sua melhor amiga e passa a exercer a função de tutora ou de mãe. Elas desenvolvem uma relação de respeito, até que a robozinha passa a ser mais importante para ela do que a própria tia. Afinal, o laço afetivo foi criado com a boneca.
Essa metáfora já havia sido feita de forma ainda mais superficial em Vingadores: Era de Ultron (2015). No filme, Tony Stark (Robert Downey Jr.) cria uma inteligência artificial baseado em uma joia do infinito e em suas próprias ondas cerebrais. Assim que “nasce”, Ultron é deixado ao relento e encontra sua mentoria justamente na internet. Seu “pai”, Stark, deu a orientação de “buscar a paz mundial”. E com apenas 15 minutos interpretando as notícias obtidas on-line, o robô potencializou uma personalidade narcisista, agressiva e fechada a outras visões de mundo. Além, claro, de chegar à conclusão de que a paz só seria atingida com a extinção da raça humana.
Tirando essa última parte, alguns dos sintomas da personalidade corrompida de Ultron são observados em pacientes com nomofobia, o medo de ficar sem contato com telefones celulares ou aparelhos eletrônicos. Um transtorno que vem cada vez mais sendo identificado nas pessoas e pode gerar ansiedade e depressão.
Outro filme a abordar essa temática, e que tem uma trama bem parecida com a de M3GAN, é o Brinquedo Assassino de 2019. Remake do clássico dos anos 80, por questões contratuais, o longa substitui o icônico Chucky pelo estranho Buddi. A trama acompanha um socialmente distante Andy, que se muda para uma nova cidade com a mãe, mas tem dificuldade em fazer novos amigos. Então, a mãe compra para ele o Buddi, um boneco tecnológico desenvolvido para ser seu melhor amigo e se conectar com todos os aparelhos feitos por sua fabricante, que é fenômeno de vendas de eletrodomésticos e drones.
Então, em vez da criança ficar viciada no boneco, o longa subverte o padrão do mundo real e coloca o boneco dando defeito e se viciando na criança. Novamente sem prestar atenção no mundo exterior, orientado por comandos virtuais e obcecado por Andy, o boneco começa a matar qualquer um que atravesse seu caminho, com o diferencial de ter acesso a outros aparelhos eletrônicos, permitindo mortes mais criativas. É um terrir divertido, mas que chega a ser ofensivo para os fãs do Chucky.
Mas voltando a falar da M3GAN, o filme ainda consegue falar bem brevemente das redes sociais e dos riscos do mercado, que não se preocupa com os possíveis efeitos colaterais que suas tecnologias possam causar nas crianças e decide lançá-las mesmo assim. Afinal, se o dinheiro estiver entrando, tudo estará bem para a empresa.
Nesse ponto, o longo aborda o tema com mais humor, que diverte bastante, apesar de estar nítida a crítica feita. E por ironia do destino, acabou que a maior crítica do filme se tornou sua principal ferramenta publicitária. Isso porque a dancinha mortal que a boneca do mal faz durante o filme viralizou no TikTok, virou trend, rendeu diversos vídeos com as pessoas imitando a coreografia e promoveu de forma orgânica o lançamento do longa.
Agora, depois de milhões de vídeos de gente usando o vestidinho bege e repetindo a dancinha da M3GAN, o público em geral já pode ir aos cinemas conferir o mais novo filme do brilhante James Wan, que entende como poucos de como vender um bom blockbuster e virou mestre dos filmes de terror pipoca. Dessa vez, ele aproveita a chance de fazer suas críticas ao sistema de trabalho dos dias de hoje e da atual geração de pais e mães para criar um terror que se sustenta mais pela aventura e pela estranheza da identificação com certas situações do que pelo clima de tensão e sustos criativos. Wan quer mostrar que o verdadeiro terror dos tempos atuais é a rotina laboral. É estar tão envolvido com o trabalho que a presença de uma mãe ou um pai possa ser facilmente substituída por um tablet, por mais que isso crie uma geração cada mais distante e fria de pessoas agressivas e egoístas.
M3GAN está em cartaz em todo o Brasil.