“Toda história tem dois lados”, diz o ditado popular. E geralmente, somente um desses lados é escolhido para ser contado quando se tece uma história. Em 1959, uma animação lançou uma das mais maldosas e terríveis vilãs de todos os tempos na cultura cinematográfica: ‘Malévola‘.
A trama da Bela Adormecida evoluiu — com diferentes títulos — ao longo de aproximadamente 400 anos (1.000 se contarmos alguns elementos convergentes dos tempos medievais). As origens mais antigas escritas da história podem ser encontradas em um livro francês, Perceforest (autor desconhecido) escrito em 1527. Em 1697, uma versão da história, The Beauty Asleep in the Woods, foi publicada por Charles Perrault em seu livro, The Tales of Mother Goose. Os irmãos Grimm usaram essa versão como base para escreverem a história de 1812 de uma bela princesa que é despertada de um feitiço, Little Briar Rose.
Por séculos, conhecemos o lado da história em que Malévola é uma “bruxa” birrenta e mal amada, que enfeitiçou uma pobre criança apenas por não ter sido convidada para seu batismo. Porém, a história pode não ter sido bem assim…
Linda Woolverton (‘O Rei Leão’), que recentemente roteirizou o mediano ‘Alice no País das Maravilhas’, teve a coragem criativa de alterar a clássica história, entregando uma personagem muito mais profunda e tridimensional que aquela que conhecíamos no conto secular.
A origem de ‘Malévola‘ como uma personagem feminina do mal nunca foi clara no desenho original, dando liberdade para que a roteirista pudesse fundamentar seus motivos em fatos passados. Com essa profundidade, todos os personagens recebem motivações claras e muito mais interessantes que as do desenho.
Malévola não é má, e sim uma mulher com o coração ferido. Suas ações e atitudes são extremamente bem transpostas para a tela por uma sensual e segura Angelina Jolie. Envolvida com a produção desde seu início, a atriz soube construir sua Malévola de maneira esplêndida, em um visual que relembra os traços do animador Marc Davis, mas tomando a liberdade criativa para que a personagem tivesse um embate interior entre o vilanesco e o heroísmo. Essa dubiedade a transforma em uma das mais interessantes personagens do cinema. A atriz parece se divertir o tempo todo, até mais do que quem a assiste.
Elle Fanning (‘Super 8’) entrega uma Aurora relativamente entediante, abrindo um sorrisão em todas as suas cenas, que nos fazem lembrar o tempo todo que a personagem foi agraciada com o dom da graça e da beleza. Mas quem conseguiria se destacar atuando ao lado do furacão Jolie?
Quando criança, Malévola (na pele da ótima Isobelle Molloy) é uma bela e ingênua criatura com atordoantes asas negras, que cresce em no pacífico reino dos Moors, até o dia em que um exército invasor de humanos ameaça a harmonia da região. Malévola surge como a mais feroz protetora da região, mas acaba sendo vítima de uma impiedosa traição — um acontecimento que começa a transformar seu coração outrora repleto de pureza em pedra. Determinada a se vingar, ela enfrenta uma batalha épica contra o rei dos humanos e, como consequência, amaldiçoa sua filha recém-nascida, Aurora (Elle Fanning). Conforme a menina cresce, Malévola percebe que Aurora é a peça essencial para estabelecer a paz no reino — e para a sua própria felicidade.
Além de Jolie, o ponto alto da produção está em sua belíssima fotografia. É um deleite visual assistir a criação do reino encantado dos Moors, um mundo cheio de fantasia e criaturas encantadas, que em alguns momentos lembra o clássico ‘Labirinto – A Magia do Tempo’ (1986).
Em sua estreia na direção, Robert Stromberg, especialista em efeitos visuais (‘Avatar’, ‘Alice no País das Maravilhas’, ‘Oz: Mágico e Poderoso’, ‘As Aventuras de Pi’), consegue recriar um universo fantástico. A direção de arte, figurino e cenários são repletos de detalhes e beiram a perfeição. Mesmo com problemas durante a produção, que afastaram Stromberg das refilmagens adicionais, é primoroso seu trabalho atrás das câmeras. O visual, ao lado de Jolie, é o grande acerto da produção.
O Calcanhar de Aquiles da produção é seu roteiro, que alterna entre o genial e o tedioso, e chega a dar sono em alguns momentos menos inspirados.
Apesar de conseguir amarrar a maior parte das pontas soltas – menos o motivo de uma garotinha do bem chamar Malévola (seria um erro de registro no cartório?) – percebemos que o texto foi escrito a várias mãos. Algumas tiradas cômicas acabam forçadas demais, e nem a boca sedutora de Jolie consegue pronunciá-las sem parecer um erro de gravação.
O ponto alto do texto é subverter o significado de “Amor Verdadeiro”, demonstrando que este pode ser muito mais grandioso que um príncipe encantado apaixonado. ‘Malévola’ é um filme feminista, e este é seu grande acerto.
Das releituras mais recentes dos clássicos contos infantis, ‘Malévola’ sai na frente como a melhor. O talento e beleza da protagonista Jolie com a direção primorosa do novato Stromberg conseguem sobrepor um roteiro mediano, transformando o longa em um deleite visual divertido e sedutor – e não apenas para as crianças.