A indústria do entretenimento contemporânea busca constantemente inspiração nos anos de ouro do Cinema e de outras vertentes artísticas como forma de respaldar novas histórias e perspectivas para o crescente público da geração millenial. Dentre suas inúmeras investidas, a paixão pela releitura de sagas pós-apocalípticas e distópicas voltou a cair no gosto popular com uma força inigualável – e aqui podemos citar o sucesso comercial e crítico de ‘Jogos Vorazes’, que trouxe temas de extrema importância para o panorama atual. A partir daí, o boom das franquias jovem-adulto espalhou-se como uma febre, permitindo a insurgência de séries como ‘Divergente’ e ‘Maze Runner – Correr ou Morrer’, as quais já indicavam um possível desgaste do gênero.
Mesmo com algumas parcas tentativas de revitalizar as distopias, fazendo referências a obras como ‘1984′, poucas conseguiram tal feito: uma delas, recentemente adaptada para a televisão, foi a aplaudível ‘The Handmaid’s Tale’, que superou todas as expectativas e nos deixou com um gostinho de quero mais e com uma sensação de esperança para o futuro do entretenimento crítico. E talvez a diretora Jennifer Yuh Nelson tenha tido a melhor das intenções ao trazer às telonas sua própria perspectiva de ‘Mentes Sombrias’, “misturando o melhor da ideologia antiutópica e da ficção fantástica”, mas seus esforços foram em vão e o resultado transformou seu mais novo longa-metragem em uma catástrofe de proporções épicas.
A história tem uma premissa interessante: acometidos por mutações gênicas que devastaram grande parte das crianças e adolescentes, o governo norte-americano percebeu que até mesmo os sobreviventes representavam uma ameaça incombatível, desenvolvendo poderes muito além da compreensão humana. Para tentar conter a maximização dessas habilidades, os jovens são trancafiados em uma prisão de segurança máxima na qual são separados por cores (verde, azul e dourado para os “mais fracos” e vermelho e laranja para os “mais fortes/passíveis de exterminação imediata”) e passam a ser tratados como escravos, servindo os soldados das forças armadas e seus respectivos chefes. É claro que, caso um pequeno twist não rolasse, a narrativa permaneceria num ciclo sem fim – e é aqui que a Laranja-fingida-Verde Ruby (Amandla Stenberg) ganha seu protagonismo ao viver com a culpa de ter se apagado da vida dos pais e agora viver no anonimato.
Ela permanece mergulhada na rotina cruel da facilidade bélica até ser ajudada pela doutora Cate (Mandy Moore), membro secreta da Liga das Crianças, a escapar de lá e seguir com ela para o encontro de outros jovens resgatados. Entretanto, por uma ironia do destino, ela acaba se juntando a outro grupo desgarrado, afastando-se dos esforços de Cate e mergulhando em uma jornada de autoconhecimento que se transforma em uma luta pela sobrevivência. Ao lado de seus “novos amigos”, ela inclusive descobre que o filho do presidente, Clancy (Patrick Gibson), suposto infectado-agora-curado, permanece com seus poderes e lidera o movimento de resistência.
Todo o maravilhoso escopo adaptado por Chad Hodge parece livre de convencionalismos – ou ao menos irá usar esses clichês ao seu favor, criando não uma futuro pós-apocalíptico que vise o aprofundamento de críticas sociais de alteridade e aceitação, mas sim uma jornada do herói simples e satisfatória. Ou era isso o que esperávamos: na verdade, Hodge se baseia tão fielmente no romance assinado por Alexandra Bracken que cria camadas e mais camadas de história para pontos que não deveriam existir. Os eventos se desenrolam de modo forçado, inclinando-se para tantas fórmulas que é quase impossível contar nos dedos a quantidade de frases feitas e lições de morais que cada um dos personagens carrega consigo.
A presença dos antagonistas é ridiculamente desperdiçada em boa parte da trama, com exceção de Clancy, que se revela um dos principais responsáveis pela segregação dos sobreviventes pela cor e que buscava juntá-los em um único lugar para serem presos de uma vez só. Além dele, a provável força encarnada por Gwendoline Christie como Lady Jane tem apenas duas sequências de foco e depois é descartada cruelmente: Christie nem ao mesmo traz seu costumeiro charme para as telonas, encontrando a óbvia ruína pelas mãos da heroína pouco depois da chegada do segundo ato. Em outras palavras, Hodge nos “presenteia” com tantos coadjuvantes que acaba se esquecendo de mergulhá-los em uma complexidade honesta ao mesmo tempo que precisa pensar em resoluções críveis – e, em vez disso, se apressa para jogá-los fora. Isso acontece até mesmo com Zu (Miya Cech), negligenciada por completo no ato final.
Os equívocos não se restringem apenas à história, mas também se alastram pelas atuações e pela composição da obra. Ruby eventualmente embarca numa subtrama romântica com o recém-conhecido Liam (Harris Dickinson), dotado de poderes telecinéticos que são bem explorados pelo filme. Entretanto, Dickinson e Stenberg não trazem uma centelha sequer de química, impedindo o público de se conectar com qualquer possibilidade futura ou se comover com o “trágico” final compulsoriamente necessário para uma sequência (a qual espero que não aconteça).
Yuh Nelson também não sabe em que direção seguir: apesar do ato inicial bem estruturado, a quantidade de transições – acompanhadas por músicas pedantes e catárticas – nos desliga do que realmente está acontecendo, além de quebrar a atmosférica tensa que é construída com as brutas investidas do governo e a comovente backstory da protagonista. O trabalho com a câmera é interessante, por assim dizer, e até se afasta do esperado, utilizando pouca profundidade de campo e um foco bem construído para aumentar a dramaticidade de certas construções e momentos – e, ao mesmo tempo, essa cautela é destruída pela estupidez de um roteiro falho e cheio de diálogos risíveis.
Ainda assim, não podemos tirar mérito de uma sequência em especial que é de tirar o fôlego e que dá um up numa linearidade emocional. Durante a única cena de batalha existente no longa, os Vermelhos aparecem de forma inesperada, lançando jatos de fogo que amedrontam todos os outros jovens sobreviventes, mostrando do que são capazes: esse momento é inesperado e emerge com grande surpresa e satisfação, aumentando o hype para um final que, por falta de outro adjetivo, é insosso e desnecessário – é sério, o cliffhanger para uma suposta continuação é vergonhoso.
‘Mentes Sombrias’ prova mais uma vez que o gênero distópico mergulha no abismo da decadência, principalmente associado a uma mistura da saga de Tris Prior com críticas distorcidas da franquia ‘X-Men’. E o problema central talvez nem seja nas frases feitas ou na falta de química, mas sim no fato da própria história se levar a sério demais e, no final das contas, não dizer nada.