Poucos diretores em Hollywood impactaram tanto a indústria do cinema mundial quanto Steven Spielberg. Um verdadeiro apaixonado por cinema e pela cultura pop, o cineasta fez parte da onda de talentos que tomaram a maior fábrica de cinema ainda nos anos 1970. Spielberg foi responsável pelos que são considerados os primeiros arrasa-quarteirões da história – obras como ‘Tubarão’ (1975), ‘Os Caçadores da Arca Perdida’ (1981) e ‘E.T. – O Extraterrestre’ (1982). Foi justamente nesta época, quando já era uma máquina de fazer sucessos, que Steven Spielberg desenvolveria o primeiro e único filme baseado na clássica série cult dos anos 1950, ‘Além da Imaginação’. E uma enorme tragédia cercaria o filme.
Foi em um encontro casual com o então chefe da Warner Bros, Terry Semel, que Steven Spielberg receberia dele a notícia que seu estúdio detinha os direitos da série clássica e que não estavam sendo utilizados. ‘Além da Imaginação’ foi um dos pilares da TV norte-americana. A série criada e apresentada por Rod Serling estreou em 1959 e durou até 1969 com seus episódios trazendo histórias de fantasia, suspense, ficção científica e terror. Na forma de antologia, cada episódio tinha seu próprio começo, meio e fim, sem ligação com o próximo. Sempre parte da cultura popular, ‘Além da Imaginação’ voltou em novos formatos na década de 1980, em 2002, e mais recentemente pelas mãos de Jordan Peele em 2019.
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Steven Spielberg além de fã do programa, tinha um carinho especial pelo criador Rod Serling, já que foi o apresentador e produtor quem deu ao diretor um de seus primeiros empregos, na série ‘Galeria do Terror’ (1969-1973), o programa que Serling emplacou após o término de ‘Além da Imaginação’ e funcionava nos mesmos moldes. Assim, Spielberg não iria deixar a oportunidade de levar às telonas pela primeira vez a icônica série. No entanto, o diretor estava ocupado demais com ‘E.T.’, que ainda não havia sido lançado, para se concentrar unicamente na versão para o cinema de ‘Além da Imaginação’. Foi quando ele teve a ideia óbvia de que um filme do programa deveria ser construído da mesma forma do seriado, ou seja, formado de quatro segmentos sem ligação, que contariam quatro pequenas histórias e cada uma delas seria dirigida por um cineasta diferente. Com Spielberg, é claro, também comandando a sua.
Para a função, Spielberg, que é o grande nome por trás da produção, servindo também como produtor, contatou John Landis (vindo dos sucessos ‘Os Irmãos Cara de Pau’ e ‘Um Lobisomem Americano em Londres’), Joe Dante (vindo do sucesso de ‘Grito de Horror’ e seguiria para ‘Gremlins’) e George Miller (saído do sucesso dos dois primeiros ‘Mad Max’). Dos quatros segmentos do filme, três seriam baseados em episódios clássicos do programa. Além disso, para a introdução do longa foi pensada numa cena metalinguística (dirigida por John Landis) em que Dan Daykroyd e Albert Brooks interpretam amigos viajando de carro à noite e comentando sobre episódios favoritos de ‘Além da Imaginação’. Até que o carro para e um deles tem uma grande surpresa.
Na transição de uma história para outra, o ator Burgess Meredith (mais conhecido como o Pinguim da série ‘Batman’ dos anos 60 e como Mickey da franquia ‘Rocky’ no cinema) narra os acontecimentos – num papel claramente pensado para Rod Sterling, falecido em 1975. O episódio de Steven Spielberg, ‘Kick the Can’ (Chutar a Lata), o segundo do filme, é unanimemente considerado o pior do longa. Na trama, um grupo de idosos em um asilo ganha a oportunidade de se sentir jovens outra vez, tudo o que é preciso é que brinquem de chutar a lata – um tema revisitado dois anos depois por Ron Howard em ‘Cocoon’ (1985).
O episódio ‘It’s a Good Life’ também usa como base uma história clássica do programa, em que um menino mimado possui poderes sobrenaturais e os usa para ameaçar sua família. A trama já foi inclusive parodiada no especial de Halloween dos Simpsons. No filme, dirigido por Joe Dante, um menino tem a bicicleta atropelada por uma mulher, que lhe dá carona até em casa e entra para conhecer sua família. O garoto os obriga a assistir desenhos animados e com seus poderes tira as animações da TV para o nosso mundo – deixando os incríveis efeitos práticos dos desenhos grotescos correrem soltos, cortesia do mesmo responsável por ‘O Enigma de Outro Mundo’ – já dá para imaginar.
A história mais elogiada do filme é a de George Miller, que dá nova versão de um dos episódios, quiçá o episódio mais memorável da série, ‘Nightmare at 20.000 Feet’. Nessa trama, um homem que tem medo de voar, vivencia um pesadelo dentro de um avião passando por uma tempestade e turbulência, quando começa a ver uma criatura na asa da aeronave (essa foi outra história parodiada em Os Simpsons). Na série clássica, o sujeito era vivido por Willam Shatner, o eterno Capitão Kirk de ‘Star Trek’. No filme, ele é vivido por John Lithgow.
Agora chegamos ao fatídico episódio de John Landis, ‘Time Out’, que é o primeiro do filme, que abre de fato as histórias. A trama é simples, e mostra um sujeito extremamente racista e intolerante, vivido pelo ator Vic Morrow, que recebe uma lição ao voltar no tempo e ser perseguido por Nazistas na Segunda Guerra, e por guerrilheiros vietnamitas na Guerra do Vietnã. A lição fará do sujeito um homem melhor. Até aí tudo bem. Acontece que para filmar um dos trechos mais ambiciosos não apenas do episódio como do longa todo, John Landis precisaria coordenar uma perseguição de helicóptero para simular a Guerra do Vietnã, em que Morrow resgataria duas crianças feitas prisioneiras. Normalmente, um trecho tão arriscado seria feito utilizando dublês e bonecos, mas John Landis era um perfeccionista.
O diretor exigiu que Vic Morrow fizesse sua própria cena de ação, garantindo que não teria qualquer risco. Mas não apenas isso, indo contra as leis da indústria audiovisual, John Landis ilegalmente utilizou duas crianças, Renee Chen (de 6 anos) e My-ca Dinh Le (de 7 anos), fora do horário permitido – ou seja, para uma gravação noturna à meia noite – subornando os responsáveis pelas crianças e a administração do estúdio. E sim, John Landis exigiu que além de Vic Morrow, as crianças também fizessem a cena arriscada da perseguição de helicóptero na água. O pior viria a acontecer, com uma das maiores tragédias já relatadas dentro de Hollywood. O helicóptero perdeu o controle durante a filmagem, e caiu com tudo decapitando o ator Vic Morrow e uma das crianças, e matando a outra esmagada instantaneamente.
A tragédia sem precedentes em Hollywood colocaria um ponto final na amizade de Steven Spielberg e John Landis. O produtor e responsável pelo filme deu uma declaração na época dizendo estar com a alma destroçada e que nenhum filme deveria valer mais do que uma vida humana. Spielberg disse também que a indústria precisava mudar e iria mudar a conduta em relação a diretores autoritários, tidos como perfeccionistas, e que em um caso de perigo todos estão aptos a gritarem corta e a não concordarem com uma cena. John Landis foi a julgamento, correu o risco de ser preso e por muito pouco não pagou a pena. Mas conseguiu se safar, e seguiu com sua carreira – dirigindo filmes de sucesso como ‘Trocando as Bolas’, ‘Um Príncipe em Nova York’ e até mesmo o clipe ‘Thriller’, de Michael Jackson. No entanto, o diretor afirma que a tragédia nunca mais deixou sua vida, e que ele é atormentado por sua consciência todos os dias.
O filme de ‘Além da Imaginação’, que aqui no Brasil recebeu o título ‘No Limite da Realidade’ seguiu em frente e foi finalizado – mesmo que aos trancos e barrancos. Spielberg não tinha mais qualquer empolgação em relação ao filme, e o terminou de forma ligada no automático. Já George Miller se sentiu completamente enojado com o comportamento de John Landis e se afastou do projeto – ele já havia finalizado as gravações de sua parte. A primeira história de Landis seguiu incluída no filme, com o ator Vic Morrow, que na vida real era pai da atriz Jennifer Jason Leigh. A cena com as crianças, no entanto, foi cortada da edição final. É dito também que Jennifer Jason Leigh processou a Warner, John Landis e o diretor Steven Spielberg e ganhou a causa.
‘No Limite da Realidade’ estreou no dia 24 de junho de 1983 nos EUA e Canadá, chegando ao Brasil no ano seguinte, em 22 de março de 1984. Com orçamento de US$10 milhões, o filme arrecadou US$29.4 milhões. Em seu fim de semana de estreia, ‘No Limite da Realidade’ debutou em quarta posição do ranking das maiores bilheterias, atrás do imbatível ‘O Retorno de Jedi’ (primeiro), de ‘Superman III’ (segundo) e da estreia de ‘Porky’s 2 – O Dia Seguinte’ (terceiro).
Hoje, 40 anos depois de uma das maiores tragédias de Hollywood, a segurança nos sets de filmagem continuam sendo colocados à prova e seguem virando manchete. Alguns dos casos mais notórios envolvem equipamentos cenográficos como armas e munições letais. Em 1994, tivemos o absurdo caso com Brandon Lee em ‘O Corvo’, e recentemente o indicado ao Oscar Alec Baldwin se tornou réu no incidente nos bastidores de ‘Rust’, faroeste produzido e estrelado por ele. O ator acidentalmente disparou uma carga letal na direção de Halyna Hutchins, diretora de fotografia do filme, a matando. Assim, filmes continuam custando vidas.