Há 30 anos, o piloto Ayrton Senna sofria o acidente fatal no GP de San Marino, em Ímola, na Itália. Há uma crença no Brasil de que todo mundo se lembra o que estava fazendo quando foi dado o anúncio da morte de Senna naquele 1º de maio de 1994. Só isso já demonstra o tamanho que esta lenda do esporte teve no país. Em uma época em que a moral do brasileiro estava em baixa, dados os problemas socioeconômicos do país, Ayrton começou a encantar o público com seu estilo de direção ousado e a sede por vitória. Com o tempo, o icônico capacete que ostentava as cores da bandeira nacional foi virando símbolo para o povo, e ver o piloto subir ao pódio e realizar as voltas da vitória sempre com a bandeira do Brasil em mãos trouxe um pouco de conforto em meio ao sofrimento de uma nação à beira da miséria. Senna era mais que um atleta, era um sinal da esperança em dias melhores.
Mas não era só no Brasil que o povo acordava de madrugada para acompanhar as curvas no limite e a determinação super-humana de Senna. O piloto foi parte fundamental do processo de consolidação da Honda no mundo da Fórmula 1 e do sucesso do esporte no país. Praticamente como um embaixador da marca, o brasileiro foi elevado ao status de entidade no país nipônico e logo se tornou um marco na Cultura Pop Japonesa.
O ano era 1985. A montadora japonesa Honda fornecia os motores para os carros da Williams e para a escuderia Lotus. Adquirindo os direitos de transmissão da Fórmula 1 para a TV aberta japonesa, a Honda precisava de um “herói” para consolidar o esporte no imaginário do povo japonês. Com a derrota por conta de más decisões da gestão da Williams na temporada de 1986, a McLaren tomou conhecimento da insatisfação da Honda com a escuderia azul.
Em 1987, a Lotus tinha o surpreendente Ayrton Senna. Mesmo com um carro mecanicamente limitado, o brasileiro conseguiu vitórias em Mônaco e nos Estados Unidos, além de conseguir o impressionante segundo lugar no GP de Suzuka, no Japão. Desde então, Senna fazia sugestões de como melhorar a aerodinâmica dos carros e dava detalhes do que precisava para um motor mais potente. Sua obsessão por vencer e ser o piloto mais rápido da Fórmula 1, sem perder a humildade, fascinou os engenheiros japoneses da Honda, que passaram a tê-lo como exemplo.
A necessidade de um “herói” para fazer o esporte crescer era simples. A maioria das provas da Fórmula 1 eram disputadas no período da manhã, que, por conta do fuso-horário, eram transmitidas nas madrugadas nipônicas. Para fazer o povo acordar tão cedo, somente com um ícone nas pistas.
Com o interesse da McLaren em contar com os motores Honda, que eram considerados os melhores da competição, chegando a dar 1 segundo de vantagem nas voltas, a empresa japonesa impôs uma condição: contratar Ayrton Senna. A parceria foi histórica e deu mais do que certo. Logo no primeiro ano pela McLaren, Senna foi campeão mundial, conquistando esse título justamente no GP de Suzuka, no Japão, assim como seus outros dois títulos mundiais. Com esse projeto vitorioso de um novo esporte na terra do sol nascente, a revista japonesa Shonen Jump fechou um acordo de patrocínio com a McLaren para estampar o logo no bico dos carros. Acontece que as aventuras de Goku em Dragon Ball eram publicadas na revista semanal, desenhadas pelos marcantes traços do agora saudoso Akira Toriyama. Dragon Ball fez tanto sucesso que virou um dos animes mais populares do país em 1989, ano da estreia nas TVs. Tendo sua imagem atrelada a dois dos maiores ícones do Japão, a Shonen Jump não foi boba e começou a publicar histórias e reportagens sobre Fórmula 1 ilustradas pelos grandes mestres do mangá. Foi dessa parceria que surgiram os mangás GP Boy e F. no Senkou: Ayrton Senna no Chousencomo, que foram sucessos instantâneos. E foi com a reportagem ilustrada BattleMan F-1 GP, em que um personagem disputava provas contra os principais nomes da F-1, que Toriyama conheceu seu ídolo, Ayrton Senna.
A foto viralizou em tempos de internet como um dos encontros mais legais entre o mundo dos esportes e o mundo da Cultura Pop. Além da determinação e das vitórias, que renderam os apelidos de Samurai e Príncipe Supersônico, Senna conquistou os fãs japoneses com seu carisma. Ele era um homem muito mais bonito e simpático que seu companheiro de equipe e principal rival, o francês Alain Prost. O brasileiro conquistou o público com sua humildade e simpatia ao atender todos os fãs que paravam apenas para observá-lo caminhar em solo japonês.
A identificação entre Senna e o Japão também tinha relação com um sentimento de exclusão. Historicamente, a Fórmula 1 é um esporte europeu. Então, quando um latino surge representando os ideais de perseverança tão disseminados no Oriente, surge o casamento perfeito dentre aqueles que tinham o sentimento de não pertencerem àquele esporte.
Ícones da velocidade
Em 1993, a empresa de videogames SEGA era uma das maiores patrocinadoras da Fórmula 1. Era um patrocínio que fazia muito sentido, já que a mascote da empresa japonesa era o simpático ouriço Sonic, famoso por sua velocidade absurda. Além do torneio, a SEGA era um dos patrocinadores máster da escuderia Williams, que mandava seus pilotos para as pistas trajados com um macacão azul, calçados vermelhos e luvas brancas, tal qual o Sonic. Além disso, a carinha do ouriço era estampada no aerofólio dos carros e os pezinhos dele eram desenhados na lataria dos veículos, de modo que parecia ser o próprio ouriço pilotando durante as provas.
Foi uma estratégia de marketing intensa e que deveria ter seu ápice com a vitória de Alain Prost, principal piloto da escuderia na época, ou Damon Hill no XXXVIII Sega European Grand Prix – ou, como ficou conhecido no Brasil, o GP da Europa de 93. Com a vitória da equipe, a marca da SEGA ficaria exposta de maneira total em todos os grandes veículos de imprensa esportiva do mundo.
O que a empresa japonesa não esperava era que Ayrton Senna, ainda pela McLaren, não apenas ganharia a prova com seu carro, que era considerado inferior às máquinas inteligentes da Williams, mas também realizaria a “melhor primeira volta da história” do esporte.
Resultado: o plano de um pódio todo azul foi frustrado por um brasileiro de vermelho, que acabou faturando um dos troféus mais icônicos da história da Fórmula 1. A nível publicitário, a invasão vermelha acabou sendo benéfica para a SEGA, que tem a foto compartilhada anualmente pelos fãs das corridas por reunir o ícone da velocidade virtual com o ícone da velocidade do mundo real.
Senninha, o herói da molecada
Se 2024 traz o luto dos 30 anos do falecimento do piloto, marca também os 30 anos da criação do simpático Senninha, a versão animada que ajudou a manter o legado eterno do piloto vivo dentre o público infantil. É impressionante como há pelo menos duas gerações que sequer viram Ayrton impressionar o mundo com suas atuações espetaculares, mas sabem quem ele foi por influência do Senninha.
‘Nascido’ em 28 de janeiro de 1994, o Senninha surgiu de um desejo de Ayrton Senna de passar seus valores e aprendizados para as crianças. Afinal, Senna era o grande ídolo da época e queria ser uma boa influência para a molecada. Então, foi decidido que a forma mais lúdica para falar com os pequenos era por meio das histórias em quadrinhos, já que assim também incentivaria a leitura.
Para criar o personagem, o publicitário Rogério Martins pensou no conceito, enquanto o desenhista da Mauricio de Sousa Produções, Ridault Dias Jr., foi o responsável por criar seu visual. Com a aparência inspirada no próprio piloto, ficou definido que o Senninha seria um menino de seis anos, alegre e confiante, que é apaixonado por corridas e enfrenta um vilão que gosta de trapacear nas pistas. Seu maior sonho, inclusive, é virar piloto de Fórmula 1.
O conceito foi aprovado e apresentado pelo próprio Ayrton Senna, que passou a ser o principal garoto-propaganda de seu personagem, usando as camisas e produtos oficiais inspirados nele pelo mundo. Mas o ponto mais interessante desse processo de criação é que a dona Neyde, mãe de Ayrton, se apaixonou pelo personagem e compartilhou histórias e curiosidades sobre a vida do piloto. Esses relatos foram usados para criar roteiros e encorpar a personalidade do Senninha, que passou a ser não apenas um personagem inspirado em Senna, mas uma versão do próprio.
Para compor o Senninha e os outros personagens que integram sua turminha dos quadrinhos, o projeto contou com o auxílio do Dr. Jacob Goldberg – psicoterapeuta, ensaísta, pesquisador, assistente social, advogado e expert no estudo de desenvolvimento humano – para definir aspectos de personalidade e comportamento que fossem influências positivas para a molecada. Com isso, ficou definido que o Senninha deveria ter resiliência, empatia, amizade, honestidade, saber trabalhar em equipe, respeitar o próximo e cuidar do meio ambiente.
O projeto foi um sucesso e as histórias em quadrinhos do Senninha foram lançadas em 28 de janeiro de 1994. Inicialmente, as HQs foram distribuídas de forma gratuita nos colégios brasileiros e nas agências do Banco Nacional, principal patrocinador de Ayrton Senna na época.
A recepção foi muito positiva, fazendo com que as edições de Senninha e Sua Turma chegassem às bancas com edições lançadas quinzenalmente.
Infelizmente, em maio daquele ano, Ayrton sofreria o acidente fatal em Ímola, na Itália, criando uma enorme comoção nacional. Ainda assim, o Senninha seguiu fazendo sucesso com a molecada e com os jovens, estrelando tiras de jornal, materiais de informação de trânsito e vinhetas para TV. Com a chegada dos anos 2000, ele ganhou uma série animada – premiada no Anima Mundi de 2004 – e uma linha de produtos que marcou época. Afinal, quem nunca ouviu falar da famosa Papete do Senninha, presença certa nos pezinhos das crianças encapetadas dos anos 2000? E parte dos lucros envolvendo o personagem são revertidos para o Instituto Ayrton Senna, responsável pela educação de milhões de jovens no país, até os dias de hoje.
Com o passar dos tempos, o Senninha foi explorando novas frentes na Cultura Pop brasileira, ganhando série animada no Gloob, prova anual de corrida, videogames e uma animação muito fofa no YouTube. Agora, para comemorar os 30 anos, o canal do Senninha lançou um curta-metragem especial em que o Senninha atual atinge uma velocidade tão alta que volta no tempo e se encontra com sua versão original.
Nesses 30 anos, o Senninha desempenhou papel importante na educação das crianças, entreteve gerações e ajudou a espalhar um pouco do legado do maior brasileiro que já correu nas pistas da Fórmula 1, fazendo dele não apenas um símbolo do Brasil nos esportes, mas também um ícone da Cultura Pop nacional. Para os fãs do piloto, fica sempre a recomendação do filme Senna: O Brasileiro, O Herói, O Campeão, que é um dos documentários esportivos mais bem avaliados de todos os tempos, e acompanha a trajetória do jovem Ayrton desde os tempos do Kart até a mobilização popular insana no dia do funeral em São Paulo. Ele pode ser assistido no Telecine.
Que esse 1º de maio de 2024 seja muito mais que um dia de lamentar pelos 30 anos da morte do ídolo, mas que seja um dia de reflexão e valorização de um legado social importantíssimo e reconhecimento de seu esforço em mostrar ao povo que o Brasil valia a pena, seja no esporte, na cultura ou na sociedade. Senna é um ídolo eterno.